Bombos e música clássica


Tenho lido com curiosidade alguma polémica a propósito do agendamento para o próximo dia 29 de um concerto da Orquestra do Norte, a acontecer no Paço dos Duques. O evento nada teria de estranho, não fosse a coincidência de data com a do cortejo do Pinheiro, com que se assinala o início das Festas Nicolinas. Quanto ao facto em discussão, não tenho nenhuma dúvida de que resultará de um equívoco, uma vez que sei bem que em Guimarães ninguém no seu perfeito juízo e em plena consciência marcaria um concerto de música clássica para aquele dia e para aquele local, a não ser que o quisesse boicotar. Não pelo dano que pudesse causar à festa dos estudantes, que seria irrelevante, mas pelo efeito que teria sobre o concerto, que seria desastroso. A situação está esclarecida e resolvida. Mas não deixaria de ter o seu encanto escutar o mozartiano concerto para piano e orquestra N. 23 em Lá Maior acompanhado por um naipe de percussão composto por centenas de caixas e bombos nicolinos…

Da discussão que entretanto se gerou, achei particularmente curiosa a troca de argumentos acerca da cultura popular e da cultura das elites, enquadrando-se o Pinheiro como uma manifestação da primeira e a música clássica como coisa da segunda. E o curioso disto vem do facto de ser manifesto que as Nicolinas são, na sua raiz mais profunda, uma festividade eminentemente elitista. No século XIX, nesta festa apenas participava um corpo restrito de pessoas de Guimarães, composto por aqueles que tiveram meios para prosseguir estudos para lá das primeiras letras, o que excluía todos os que quisessem participar na festa sem terem o estatuto de “estudantes” (os futricas, aos quais se reservavam os vexames da praxe, tais como os banhos invernais forçados no velho chafariz do Toural). Já no século XX, com a apropriação das festas pelos estudantes do Liceu, não faltam momentos em que o elitismo dos filhos da “melhor sociedade” vimaranenses veio ao de cima. Ainda há por aí quem se lembre de quando, em certa edição das roubalheiras, foi afixada à porta da Escola Industrial a placa da Casa dos Pobres.

Foi pelo seu carácter elitista que, em tempo de revolução, se quis acabar, felizmente sem sucesso, com as Nicolinas.

Em Dezembro de 1910, escrevia-se num jornal cá da terra, a propósito das Nicolinas:

“Acabai com isso, que faz lembrar os batuques dos selvagens, que parece um trecho de sertão africano deslocado para um meio civilizado”.

Em 1974 as festas lá se realizaram, mas não sem contestação daqueles que as viam como uma manifestação de classe. Mas não sem algumas cedências: foi abolido o trajo nicolino, identificando-se os estudantes que andavam pelas casas em peditório com um “cartão autenticado pela Secretaria do Liceu e pela Associação dos Antigos Estudantes do Liceu de Guimarães” e foi acrescentado um novo (e efémero) número ao programa, um debate político em que os representantes dos partidos políticos dissertaram sobre “a democratização do ensino”.

É evidente que a realidade dos dias de hoje é diferente, por força da massificação do ensino e da mutação das mentalidades. Nos tempos que correm, as Nicolinas são uma festa inclusiva, como nunca o haviam sido no passado. Hoje não há futricas, porque todos (e todas) têm lugar nos festejos. No entanto, à luz da história, não deixa de ser irónica a troca de argumentos acerca da cultura popular e da cultura de elites quando se fala das festas dos estudantes de Guimarães. 

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2 Comentários

Torcato Ribeiro disse…
Como sempre, na mouche.
Samuel Silva disse…
Se a ideia da Guimarães 2012 era fazer emergir uma cidade cosmopolita, estamos bastante atrasados.