A igreja de S. Francisco de Guimarães, no início do séc. XX. (clicar para ampliar) |
Na Secção Literária
do primeiro número do jornal O Conciliador (5 de Maio de 1860), José Joaquim da
Silva Júnior publicou um texto com o título “Um facto do século passado”, em
que contava a história da festa do ladrão, que se celebrava na igreja de S.
Francisco a cada dia 29 de Abril. O facto que aquela festa celebrava terá
acontecido no ano de 1710 (diz o autor que calhou então a uma terça-feira, o
que não corresponde à verdade: o dia 29 de Abril de 1710 calhou a um domingo).
Aqui fica o texto em referência:
Há por aí memórias que,
apresentadas aos olhos dos homens, não deixam de causar uma certa impressão, o
que, para que ele as acredite, necessita de empregar uma crítica severa; tal é
o facto que passo a narrar.
No domingo próximo passado que se
contam 29 de Abril, fui eu despertado por uma ideia a que não podia deixar de
prestar o meu assentimento. Ouvi repicar os sinos de S. Francisco, a princípio
estranhei o caso, e moveu-me a curiosidade ir ver o que seria, porém, antes de
entrar na igreja, vi um homem (era o chamado servo da Irmandade de Santo
António) conduzindo nos braços uma porção de velas de cera, estacionei e,
pensando por um pouco, disse: - Ah! Sim – é a festa do ladrão.
Parece-me que os meus leitores tomaram
isto por uma graça. Pois olhem, que o não é. A chamada festa do ladrão é uma
missa cantada, que anualmente se costuma celebrar no altar de Santo António em
comemoração de um atentado de roubo, que se ia perpetrar na capela do mesmo
santo, ou em toda a igreja, cujo facto é o seguinte:
Um pobre mendigo por nome Manuel
Dias, natural do bispado de Coimbra (assim diz a crónica) em a madrugada do dia
29 de Abril de 1710, dirigiu-se a um largo que, plantado de carvalhos, fica ao
norte da igreja de S. Francisco, e em uma janela, que ainda hoje ali existe
acima do rés do chão seis ou sete palmos, empreende a tentativa de arrombamento
(não se sabe se tinha companheiros) e tendo já tirado uma grade de arame, que
era mais própria para defender a vidraça de alguma pedrada, com que os rapazes
a podiam mimosear, do que para segurança do local para onde dava, teve de
sucumbir ao enorme peso de tal grade, e deslocando uma
coxa, ainda que o homem se esforçou por fugir, não pôde ir mais longe que três
varas.
Este dia era uma terça-feira.
Chegada que foi a manhã, dirigindo-se à igreja de S. Francisco, com o santo fim
de ouvirem a missa, umas mulheres viram o tal meliante mendigo deitado por
terra, e julgando que algum malfeitor o havia maltratado, foram primeiro
(talvez cheias de medo) chamar os frades e dar-lhes parte do que viram.
Saíram dois frades do convento e
foram ter com o homem, que se não movia de onde estava, e, perguntado,
respondeu; que queria roubar o Santo António. Os frades, depois de terem
livrado o ladrão do peso da grade,
conduziram-no à igreja, aonde já era mui numeroso concurso do povo, e querendo
pô-lo em lugar seguro, o levaram para a capela maior: o povo, que o queria ver,
e que talvez ainda no dia antecedente o tinha visto pedindo esmola de porta em porta,
mas que, não lhe agradando o ofício, queria fazer-se rico depressa e por meios muito lícitos, se aglomerava em roda
dele, de sorte que não houve remédio, senão tirá-lo dali e levarem-no para um
dos púlpitos, onde era visto por todos à vontade. Esteve ali até ao meio-dia.
A esta hora chegou o Juiz de Fora
com o seu competente séquito e, dirigindo-se ao delinquente,. Lhe começou a
fazer perguntas. Nesta ocasião foi vista a imagem de Santo António banhada em
água ou suor que, correndo, molhou a toalha do altar e outros panos com que se
procurou secar aquele líquido. Este facto, diz a crónica, causou sensação nos
circunstantes e na verdade e para causar, assim como causou a mim, e há-de
causar a todos os que tiverem conhecimento dele; não fazemos mais comentários.
Depois deste acontecimento, os
frades entregaram à Misericórdia o dito senhor
Manuel Dias, para no hospital lhe ser tratada a lesão, que houvera recebido
do atentado, aonde morreu, passados dois meses, estando sempre assistido por
frades franciscanos, a quem dissera que queria ser enterrado no pátio à entrada
da igreja.
Tenho, pois, narrado o facto, e
agora resta-me mostrar o seu testemunho.
Já os amáveis leitores sabem que
eu li a crónica de S. Francisco que, além do que fica dito, diz que o juiz de
fora mandara lavrar um auto de tudo isto. É um documento que tenho desejo de o
haver à mão (se ele existir) no que me empenharei, e dele lhes darei
conhecimento.
Além da crónica existe a
tradição, que está em harmonia com o que deixo dito. Deste acontecimento foram
coevos os avós de algumas pessoas que ainda hoje vivem e contam o facto por o
terem ouvido àqueles: este testemunho parece que não deve ter-se por suspeito.
Sobre tudo, porém, o anteparo que
está à entrada da igreja de S. Francisco, tem na parte superior um retábulo,
dividido em duas partes; em uma destas se vê o ladrão tendo sobre ele uma grade
de arame, algumas mulheres querendo levantá-lo e dois frades. No fundo do
retábulo se lê o seguinte, que reproduzimos fielmente como está escrito:
RETRATO DE MANOEL DIAS NATURAL DE
COIMBRA ESTE QUIS ROUBAR A CAPELA DE ST.º ANTÓNIO E TENDO TIRADO A REDE DA
BIDRAÇA CAHIU COM ELLA E DESCONGUNTOU HUA PERNA COM QUE NÃO PODE FUGIR ATE PELA
MANHAM CHEGARÃO HUAS MULHERES QUE CHAMANDO A DOUS RELIGIOZOS O BIERÃO LEBANTAR.
Na outra parte do retábulo vê-se
a imagem de Santo António no seu altar, o ladrão, a justiça e, além disto,
frades e povo tendo nas mãos panos brancos e, no fundo, a seguinte legenda:
LEBANDO A IGREJA DIANTE DE ST.º
ANT.º CHEGOU A HELE O DOUTOR JUIS DE FORA E LHE QUIS FAZZER ALGA.S
PROGUNTAS E NESTE TEMPO SUOU O SANTO PELO ROSTO E MÃOS QUE MOLHOU MT.ª SOMA DE
LENÇOS DAS PEÇOAS QUE ESTAVAM PREZENTES EM 29 DE ABRIL DE 1710.
Este mesmo retábulo (sem a
legenda), está reproduzido no azulejo da capela maior da igreja ao lado do
Evangelho, o qual se julga foi ali posto em 1740, isto é, trinta anos depois do
acontecimento. E junto ao altar de Santo António, está uma rede de arame
pendurada na parede, e nela se lê o seguinte.
Esta foi a rede que Santo António lançou ao ladrão Manoel Dias em 29 de
abril de 1710.
Finalmente, em todos os anos se
celebra neste dia uma missa cantada em memória do acontecimento.
José Joaquim da Silva
Júnior
O Conciliador, n.º 1, 5 de Maio
de 1860, pp. 1-2
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