Dos incêndios


Guimarães, 23 de Outubro de 2009

A notícia do incêndio de dia 23, na rua de Camões, renovou um velho debate sobre as condições de segurança nas construções antigas de Guimarães situadas no Centro Histórico e na respectiva "zona tampão". Essa é uma discussão importante. Pode contribuir para que se não deixe cair a guarda em matéria de prevenção, mas a verdade é que não há nenhum meio para tornar aquelas velhas construções imunes a incêndios. A solução seria a substituição dos materiais e técnicas de construção tradicionais, em que o granito se conjuga com a taipa de fasquio e a taipa de rodízio, por materiais incombustíveis, promovendo-se a betonização dos edifícios. Mas aí já não estaríamos a falar, seguramente, do Centro Histórico de Guimarães.

Incêndios sempre os houve e, certamente, sempre os haverá. Mas a cidade sempre se soube recompor a seguir às grandes catástrofes que a atingiram ao longo da sua história.

Não faltam memórias de grandes incêndios. Um dos mais terríveis de que temos registo é o que levou, em 4 de Junho de 1869, quase todo o topo norte do Toural (apenas se salvou o edifício da esquina virada a poente, que era de construção recente e em pedra), provocando quatro mortos e centenas de feridos, resultantes de uma explosão num armazém onde se guardavam, entre outro produtos inflamáveis, pólvora e gás. Na altura, foi voz corrente que o número de mortos seria mais elevado, porque não terão voltado a ser vistos uns carpinteiros da Senhora do Porto que então estavam a trabalhar em Guimarães.


Aqui fica o relato desse desastre, tal como apareceu no jornal Religião e Pátria:



O lado virado a Norte do Toural, já recuperado do grande incêndio de 1869 (fotografia de 1884)


Horrorosa catástrofe

Guimarães presenciou, na madrugada de ontem, uma das mais horrorosas catástrofes de que aqui há notícia.

Pelas duas horas deram as torres sinal de incêndio, que estava já muito ateado, numa casa ao Toural, onde o snr. João José de Sousa Aguiar tinha um armazém de fazendas e de molhados e materiais inflamáveis, e uma fábrica de refinação de açúcar.

Os socorros acudiram prontos e, apesar do incêndio ter tomado proporções assustadoras, várias pessoas se dispunham já com corajosa dedicação a combatê-lo, quando se ouviu uma fortíssima detonação seguida de uma violenta explosão. É escusado descrever a cena horrorosa que se passou então. Passado o primeiro pasmo, principiaram a ouvir-se clamorosos alaridos, gritos aflitivos de dor.

As vítimas haviam sido muitas. A explosão arremessara para longe uns, a outros fizera-os cair dentro da labareda, que então tomara proporções gigantescas.

Ninguém, por muito tempo, se chegou a o incêndio. Apenas se tratou logo de valer às vítimas, que principiaram a ser conduzidas em macas para o hospital da Ordem se S. Domingos, que a respectiva mesa prontamente franqueou.

Dos que se sabe, contam-se vinte e dois gravemente feridos, dos quais já faleceram três.

Dos outros, mais ou menos levemente contusos e feridos, talvez possa dizer-se que foram todas ou quase todas as pessoas que assistiam e trabalhavam na extinção do incêndio, porque a explosão fez voar estilhaços, que varreram o terreiro e quebraram as vidraças das casas vizinhas.

Afinal, o incêndio, achando elemento, desenvolveu-se numa escala espantosa, passou às casas contíguas e devoraria ainda as outras se não fosse fortemente combatido; mas era já alto dia, e ainda nãos e tinha conseguido a sua completa extinção.

Além das lamentáveis desgraças, que consternaram toda esta população, os prejuízos foram também grandes, apesar de se fazerem muitos salvados em géneros de negócio e móveis pertencentes às casas vizinhas que mais ou menos sofreram o incêndio.

Todos trabalharam com dedicação e coragem; mas são dignos de especial menção os bombeiros e os soldados do destacamento do 14, que se arrojavam denodadamente ao perigo, e que se viam sempre no mais aceso do incêndio.

Merecem também louvores os facultativos que imediatamente correram a valer às vítimas, os padres que se dispuseram a ministra-lhes os sacramentos, as mesas da V. Ordem Terceira de S. Domingos e de S. Francisco, pela prontidão com que mandaram abrir os seus hospitais.

As casas estavam seguras nas companhias Garantia e Bonança.

Parece que o proprietário do armazém fora há tempos intimado para retirar dali os materiais inflamáveis, e que não fizera caso da intimação.

Como este, há ainda por aí outros armazéns e depósitos, que nunca deviam ser consentidos senão em casas isoladas, para fora de barreiras.

Sirva ao menos isto de exemplo e prevenção para futuras catástrofes.

Religião e Pátria, 9.ª série, n.º 47, 5 de Junho de 1869


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