História e tradição


No debate sobre a questão do nascimento de D. Afonso Henriques, tenho assistido (de longe) a alguma argumentação, particularmente incisiva, que sustenta que D. Afonso Henriques nasceu em Guimarães em 1111. A sustentação desta afirmação, segundo aqueles que a usam, remete exclusivamente para a tradição, aparentemente intemporal. A verdade é que a data de 1111 não foi definida por via da tradição, mas sim por mão erudita, uma vez que foi fixada no século XIX por Alexandre Herculano a partir da sua leitura dos documentos medievais, em particular da Chronica Gothorum. A tradição, muitas vezes veiculada na historiografia portuguesa ao longo dos séculos, é a que podemos encontrar, por exemplo, a abrir o capítulo sobre D. Afonso Henriques na História Genealógica da Casa Real Portuguesa, onde se lê:

De El-Rei D. Afonso Henriques.

Corria o duodécimo século da Redenção do Mundo, quando deu princípio à Monarquia Portuguesa o grande coração, e incomparável valor de El-Rei D. Afonso Henriques, que nasceu na Vila de Guimarães a 25 de Julho do ano 1109. Em vida da Rainha sua mãe não teve mais título, que o de Infante; por sua morte usou do de Príncipe. Entrou a governar a 24 de Junho do ano de 1128 e no de 1139 foi aclamado Rei a 25 de Julho (dia em que a Igreja celebra a festa do Apostolo Santiago, insigne Patrão de Espanha) na famosa vitória do Campo de Ourique, em que triunfou do formidável poder Mauritano, e em que ficaram vencidos cinco Reis, a que acompanhavam muitos Príncipes poderosos, fabricando naquele memorável dia o Ceptro Português, e segurando a sua perpetuidade na prodigiosa visão de Cristo Senhor Nosso, como o mesmo Rei testemunhou no juramento, que deu na presença da sua Corte, treze anos depois de passada a dita visão.

Sousa, António Caetano de Sousa, História Genealogica da Casa Real Portugueza, Officina de Joseph ANtonio da Silva, Lisboa Occidental, 1735, Tomo I, p. 31.

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3 Comentários

António José Coelho disse…
Dr.º Amaro das Neves penso que a tese do Dr. A. de Almeida Fernandes, "Viseu, Agosto de 1109, nasce D. Afonso Henriques" vai fazendo o seu caminho contra a tradição do nascimento em Guimarães. Todos temos consciência que o peso da "tradição" é grande, mas isso não nos deve deixar de reflectir ou turvar nos pensamentos. È uma tese com só com quase 20 anos contra a afirmação de uam tradição de quatro séculos.
Deixe-me lembra-lhe Séneca:
"Veniet tempus quo ista quae nunc latent in lucem dies extrahat et longioris aeui diligentia. Ad inquisitionem tantorum aetas una non sufficit, ut tota caelo uacet: quid quod tam poucos annos inter studia ac uitia non aequa portione diuidimus? Itaque per successiones ista longas explicabuntur. Viniet tempos quo posteri nostri tam aperta nos nescisse mirentur.”

Séneca
(Corduba, 4 a.C. – Roma, 65 d. C.)
in SÉNÈQUE – Questions Naturelles, texte établi et traduit par Paul Oltarmare. Tomo I/III, Paris, Société d’Édition Les Belles-Lettres, 1929, pp 326-327.

Tradução livre: “Virá o dia em que, através de um estudo continuado de muitos séculos, as coisas actualmente escondidas parecerão evidentes e a posteridade se espantará por coisas tão claras nos terem escapado.”

Saudações,
António José Coelho
António José Coelho disse…
Dr. Amaro das Neves,
Volto a recordar-lhe Séneca no comentário anterior e venho aqui novamente para lhe deixar mais alguns testemunhos sobre a tese do Dr. Almeida Fernandes sobre o nascimento em Viseu de D. Afonso Henriques. São recentes.

”Pessoalmente, enquanto medievalista e professora de História essa é uma tese que eu adopto".
"Sabemos que há colegas que desde há muito comungam esta conclusão de Almeida Fernandes, que está absolutamente fundamentada, em documentação e, da minha perspectiva pessoal, é inegável".
A medievalista referiu que "o novo gera sempre polémica, sobretudo quando a tradição é muito forte", mas lembrou que "nada tirará a Guimarães o prestígio de ter sido a cidade a partir da qual arrancou o processo português". "Não penso que minimize Guimarães a circunstância de historicamente reconhecermos que Afonso nasceu em Viseu. Como também não minimiza Coimbra. Viseu, Guimarães e Coimbra são as três cidades que num abraço estão na base da fundação de Portugal", considerou.
Professora Doutora Manuela Mendonça
Presidente da Academia Portuguesa da História
in Lusa, 16 de Setembro de 2009

“Pessoalmente subscrevo completamente a tese de Almeida Fernandes [sobre o nascimento em Viseu de D. Afonso Henriques], aliás, convenceu-me”.
“O novo gera sempre polémica, sobretudo quando a tradição é muito forte"
Professora Doutora Manuela Mendonça
Presidente da Academia Portuguesa da História
in TVI, 16 de Setembro de 2009

“É uma tese que me parece consistente, porque se baseia em documentos, não é uma tese que parta de especulações ou tradições, é uma tese que lê documentos que foram encontrados. Obviamente quando se faz a história a partir das tradições, depois quando surgem documentos é sempre difícil as pessoas convencerem-se que se calhar não é bem assim como a tradição conta. Os documentos que foram encontrados são verdadeiramente consistentes e, portanto, enquanto não forem encontrados outros que os contradigam parece-me que esta tese é muito verosímil. A mim parece-me que ele [Almeida Fernandes] interpretou bem os documentos”.
Professora Doutora Graça Videira Lopes
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova
In declarações à Agência Lusa, 16 de Setembro de 2009

“Considero credível a tese de A. de Almeida Fernandes quanto ao nascimento de Afonso Henriques em Viseu, a qual, por sua vez, vem relançar a importância que essa cidade teve no quadro geopolítico do Condado Portucalense dos inícios do século XII”.
Mestre Anísio Miguel de Sousa Saraiva
Investigador em História Medieval Portuguesa
Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra
18 de Setembro de 2009

“D. Afonso Henriques nasceu em 1109 9
9 Viseu, Agosto de 1109, nasce D. Afonso Henriques,….)”
Professor Doutor Bernardo Vasconcelos e Sousa
In História de Portugal (coordenação de Rui Ramos), Esfera dos Livros, 2009

“Em Viseu de 1109 nascia, muito provavelmente em Viseu, um menino a quem os seus pais deram o nome de Afonso”
Professora Doutora Manuela Mendonça
Professora da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
in “D. Afonso Henriques”, colecção Reis de Portugal, Academia Portuguesa da História/QuidNovi, 2009

“.. (não nos esqueçamos que tendo nascido, provavelmente em Viseu, em 1109, o rei [D. Afonso Henriques] contava sessenta anos à altura da derrota de Badajoz)“.
Professor Doutor Luís Miguel Duarte
Faculdade de Letras da Universidade do Porto
in “D. Sancho I”, colecção Reis de Portugal, Academia Portuguesa da História/QuidNovi, 2009

Saudações
António José Coelho
Caro Senhor,

É muito estimável essa sua colecção de citações sobre o provável, verosímil, credível, muito provável e, novamente, provável nascimento de Afonso Henriques em Viseu. Eu poderia replicar-lhe com umas quantas sobre o provável nascimento de Afonso Henriques em Guimarães, em Coimbra ou em Sever do Vouga. Em todos os casos seriam matérias de fé e não de ciência histórica. Cá por mim, continuo a dizer o que sempre disse: não sei onde Afonso Henriques nasceu e não tenho raiva de quem saiba (até porque sei que ninguém sabe). E isso, repito-o, não é inquietação que me tire o sono.

Ou seja, atribuo a todas as afirmações que cita, vindas de tão distintos e respeitáveis eruditos, a mesma importância que daria se fossem proferidas pela Floribela ou pelo Cristiano Ronaldo, porque não acrescentam nada, apenas dando conta de convicções pessoais. Quando encontrar alguém que mostre documentos que comprovem inequivocamente que Afonso Henriques nasceu em Viseu no dia 9 de Agosto de 1109, agradecerei penhoradamente que faça o favor de me avisar, que, aí sim, estarei interessado em conhecer.

Quanto à sua citação de Séneca, convirá comigo que está muito mal aplicada, neste contexto. Ainda, nesta matéria, não vi evidências assim tão claras que me espantassem, para além do espanto que produz em mim ver os sábios que cita apegarem-se a uma fé que os ilumina e que lhes diz, até com dia certo, que Afonso Henriques nasceu em Viseu em Agosto de 1109. Por mais reconfortante que seja a fé, ela não pode substituir os documentos: só eles poderão trazer a tal clareza a que se refere Séneca.

Saudações cordiais