As minhas relações com Martins Sarmento datam dos fins de 1879. Foi o meu prezado amigo, e seu primo, o snr. conde de Margaride quem me apresentou a ele, por ocasião de umas férias escolares que eu passava em Guimarães. A primeira vez que lhe falei, estava Martins Sarmento à banca, à noite, a trabalhar na primeira edição do seu estudo da Ora Marítima de Avieno. A mim prendeu-me imediatamente o modo lhano como me recebeu, tendo ele então já firmados os seus créditos de erudito, e sendo eu nas letras mero principiante. Recordo-me que logo nessa noite falámos muito. Depois disso não me faltou ensejo de estar com ele, porquanto, durante a época da minha formatura no Porto, eu ia a Guimarães frequentemente nas ferias. Com Sarmento realizei mesmo algumas excursões arqueológicas, pelos arredores da sua cidade natal, à Citânia de Briteiros, a Soajo. Conquanto eu a esse tempo andasse na febre da colheita das tradições populares portuguesas, e no começo dos meus estudos filológicos, já sentia bastante inclinação para a arqueologia, à qual, por dever dos meus cargos oficiais, e para a execução do plano dos meus trabalhos, tive posteriormente também de consagrar-me: o contacto com Martins Sarmento não afrouxou, de certo, essa inclinação!
Ligados pelo interesse comum pelas coisas da arqueologia e da cultura popular, separava-os uma manifesta diferença de carácter, que ajuda a perceber algumas desavenças científicas que mantiveram, em especial depois de 1896, e que justificam o esfriamento das suas relações nos últimos anos da vida de Sarmento. Leite de Vasconcelos, que se descreve a si próprio, numa carta que escreveu a Sarmento no início de 1884, como alguém sem dotes oratórios, “tão seco falando, como escrevendo”, traça do arqueólogo vimaranense um retrato muito diferente do seu:
A par dos seus méritos científicos, Martins Sarmento dispunha de méritos literários. Escrevia com muita facilidade. As suas cartas, – como em geral todos os seus escritos, mesmo os mais sérios –, participam também dessa simplicidade que caracteriza a linguagem familiar e despreocupada. Sarmento escrevia pouco mais ou menos como falava.
Os textos que aqui se publicam são os apontamentos que Leite de Vasconcelos e Martins Sarmento retiraram numa excursão que realizaram ao Soajo, em meados de Setembro de 1882. As referências aos preparativos para esta incursão arqueológica e etnográfica, organizada por Sarmento, aparecem na sua correspondência para o seu amigo José Leite. A primeira, dá conta que a expedição seria combinada a partir de Vila Praia de Âncora, para onde o arqueólogo se preparava para partir, entre finais de Julho e inícios de Agosto. Será dali que, no dia 22 deste mês, Sarmento escreverá, dizendo que a excursão se deveria realizar entre 10 e 15 de Setembro, aproveitando para dar algumas instruções acerca do equipamento com que José Leite se deveria prevenir para enfrentar a viagem:
Dizem os entendidos que se não deve ir ao Soajo sem os seguintes apetrechos – uma manta, cobrejão ou o que quer que seja que se leve sobre a albarda da burra, e em que a gente se tem de embrulhar até o nariz a certas horas em que o frio é intruso; item, casacão grosso, de Inverno, para o mesmo efeito, sem esquecer que também o fato leve é indispensável para outras horas do dia e para certos sítios mais abrigados; item, uns alforges para levar neles roupa, etc., e que se põem comodamente na anca do animal. Um pau para ajudar a marcha é bom.
Numa outra carta, datada do primeiro dia de Setembro, Sarmento notaria que a excursão não admitirá “contas do Porto” – o que me aborrece bem – e por isso será necessário saber-se com certeza que companheiros o meu amigo traz, para prevenir o meu cicerone.
No dia 6, a incursão por terras soajeiras já estava organizada, conforme Sarmento dá conta a Leite de Vasconcelos:
A excursão ao Soajo está marcada para o dia 10 (dez) do corrente. Devemos encontrar-nos em Viana, cerca da uma hora da tarde. É a essa hora que eu chego, saindo daqui no comboio do meio-dia, e ao meio-dia o meu amigo deve estar em Viana, vindo no comboio que cruza com aquele em que eu saio daqui. O ponto de reunião em Viana deve ser o restaurante da estação do caminho-de-ferro. De Viana vamos em carro até à Barca, e no dia seguinte subiremos para o Soajo, partindo às 4 da manhã. O João Gomes, que é o nosso cicerone, hospeda-nos essa noite; mas eu falei-lhe só no meu amigo, por ter como certo que virá só, pedindo-lhe que arranjasse uma cavalidade para o dia seguinte. No caso de trazer mais alguém consigo, previna-me, para nós não termos embaraços à partida.
Participariam na expedição, além de Sarmento e de Vasconcelos, João Gomes, o Dr. António de Lacerda e o Dr. António Inácio Ferreira de Freitas. Nas notas de José Leite de Vasconcelos, ficou registada uma imagem impressiva do grupo dos expedicionários que então esquadrinharam os segredos que as montanhas guardavam:
Nós todos a cavalo, os srs. dr. Martins Sarmento e dr. Freitas, embrulhados em mantas como dois alentejanos, os srs. João Gomes, dr. António de Lacerda e eu, embrulhados em cobertores brancos, seguíamos através do nevoeiro, pela serra fora, à maneira das visões fantásticas das baladas do Norte.
[Posfácio da obra "Uma Excursão ao Soajo em 1882", da autoria de José Leite de Vasconcelos e de Francisco Martins Sarmento, primeiro volume da colecção de minimis, hoje lançado pela Sociedade Martins Sarmento.
O livro é composto por notas de viagem colhidas por Leite de Vasconcelos e Francisco Martins Sarmento numa excursão ao Soajo, em Setembro de 1882. O texto de Leite de Vasconcelos, com o título Uma excursão ao Soajo – Notas numa carteira, foi inicialmente publicado em 1882, na Tipografia do Tirocínio, em Barcelos, num opúsculo que teve uma tiragem de apenas 30 exemplares. As notas de Martins Sarmento são retiradas dos seus cadernos Antiqua, onde deixou o registo minucioso de três décadas de explorações arqueológicas e etnográficas.
A obra, com o preço de capa de 5 euros, já se encontra à venda na SMS, em Guimarães.]
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