S. Mamede versus Ourique

O milagre de Ourique. Gravura da Col. da Sociedade Martins Sarmento.

A afirmação da tradição histórica que coloca a Batalha de S. Mamede como a data da fundação da nacionalidade é relativamente recente. Durante largo tempo prevaleceu Ourique, até mesmo em Guimarães.

A primeira vez que vemos a Batalha de S. Mamede assinalada em Guimarães, com alguma solenidade e grandiosidade, foi no oitavo centenário do 24 de Junho, em 1928. Aliás, não foi bem a 24 de Junho, porque as comemorações tiveram lugar no dia 23 de Junho e nos dias 6, 7 e 8 de Julho.

Até então, apesar de Alexandre Herculano, em meados do século XIX, ter elevado a batalha de S. Mamede à condição de acto fundador da nacionalidade, prevalecia a tradição que dava Ourique, muito por força do milagre que lhe está associado, como o momento em que Portugal nasceu. Em Guimarães, também era assim: era em função da Batalha de Ourique que se estabelecia a cronologia do antes e do depois da fundação da nacionalidade, atribuindo-se a S. Mamede um papel manifestamente menor.

A nossa literatura historiográfica segue pela mesma linha. O Padre Torcato Peixoto de Azevedo, nas suas “Memórias Ressuscitadas da Antiga Guimarães”, escritas em 1692, nem sequer se refere à batalha de S. Mamede. Dos feitos de Afonso Henriques, sobreleva a luta que travou contra os sarracenos. O Padre António José Ferreira Caldas, que escreveu o seu “Guimarães” já no último quartel do século XIX, quando delineia a biografia de Afonso Henriques, também não se refere ao feito de S. Mamede. Refere-se-lhe no capítulo onde trata dos primeiros lineamentos da liberdade portuguesa, onde classifica S. Mamede como “o grandioso prólogo da nossa história”, onde se derramou “o primeiro sangue pela independência de Portugal”. Mesmo aí, era Ourique que se elevava. Segundo o Padre Caldas, será “no sempre memorável dia 25 de Julho de 1139, [que] o anjo da vitória entrega em Ourique a D. Afonso a coroa de rei e confere a Guimarães o sempre glorioso título de «berço da monarquia»”.

A prevalência de Ourique transparece igualmente do número único da publicação “A Apotheose”, com que no dia 19 de Outubro de 1887 se assinalou a inauguração do monumento a Afonso Henriques. Na mais de meia centena de pequenos textos que aí se publicaram, Afonso Henriques aparece por três vezes cognominado como o “herói de Ourique”, e também como “vulto grandioso de Ourique”, “glorioso vencedor de Ourique” e “heróico batalhador do campo de Ourique”. Sintomaticamente, nessa publicação apenas encontrámos uma referência ao "herói de S. Mamede".

O tempo do 24 de Junho ainda tardaria a chegar.

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