Antigamente: O Natal em Guimarães

"Naquele tempo não havia a árvore ao Natal, nem mesmo o “Pai Natal” era conhecido da petizada; o que se sabia era que o Menino Jesus vinha nessa noite com um alforge cheio de coisas boas, brinquedos, bonecas e macacaria articulada, visitar os quartos dos meninos “que se portassem bem”, e isso era indispensável, e distribuir-lhes os seus presentes.

Só depois é que começou a aparecer, mascarado, o tal "Pai Natal" de barbas brancas e de indumentária para resistir às neves; aqui com este clima doce e ameno, em que a neve só aparece lá para o Gerês e Terras de Barroso, não há quem o compreenda coberto de neve; a petizada só acredita no Menino Jesus, esse, sim, era o que lhe trazia as bonecas de cabeça de porcelana, umas até que fecham os olhos ao deitar, muito bem paramentadas, mas cheias de serradura na barriga, braços e pernas; os soldados de chumbo, todos em formatura nas caixas de cartão; as barretinas e espadas de folha; as espingardas que disparavam uma rolha, ou estouravam um fulminante de papel, redondo, e que se compravam em caixinhas vermelhas; os cavalos, desde os pequeninos até aos grandes, que a gente miúda podia montar; os bonecos de corda e o macaco que trepava pelo fio, eu sei lá que de coisas bonitas, que eram o encanto da pequenada, e tamanho ele era que não descansava enquanto não visse como aquilo “era por dentro”.

Mas agora, Santo Deus!, o que para aí vai de brinquedos bonitos, bem apresentados, realmente encantadores, uns, e outros igualmente aliciantes, mas de duvidosa educação moral - pistolas metralhadoras, morteiros de trincheira e carros de assalto com os respectivos canhões, tudo isto felizmente de plástico - coisas que mais encantarão os velhos do que as crianças.

Ora neste ano* dei uma volta pela cidade e pela Praça, no sábado que calhou ser a véspera do Natal.

Muita gente, muita criançada pelas ruas, as lojas de brinquedos cheias de compradores, e na Praça também muita gente, mas não tanta como no sábado de Aleluia.

Quando vou a Guimarães num sábado pela manhã, não deixo de ir admirar o mercado das flores, que é coisa digna de se ver, porque as vendedoras, talvez pela influência do artigo que expõem, têm tanto gosto na apresentação dos cestos e açafates que é um verdadeiro encanto para os olhos.

Vale a pena dar uma saltada à Praça num sábado pela manhã, enquanto os açafates estão intactos, mas, como todas as coisas dignas de se ver, têm um contra, que é o local acanhado da exposição, o da varanda que está bem nos dias de chuva.

Num local mais amplo, onde se possa desfrutar o conjunto dos cestos, numa manhã brilhante de sol, do mês de Maio, é uma exposição tão maravilhosa e atraente que vale bem o incómodo do levantar cedo.

Depois andei à procura das mulheres das grandes talhas de mel e fiquei desolado com o aspecto sórdido e pouco convidativo do espectáculo, em que só vi duas infusas de barro vidrado e o resto eram cântaros de folha mal amanhados, e sem as colheres de pau, e os vendedores e vendedeiras de indumentária muito pelintra, muito longe daquelas lavradeiras frescas e anafadas, com os seus lenços de cores berrantes que havia há cinquenta anos.

Realmente aquilo está a pedir a intervenção de alguém de bom gosto que aconselhasse as vendedeiras a apresentarem-se mais convenientemente numa data de festa como a que passou, e até arredar de lá uma vendedeira de tripas enfarinhadas e de chouriços de sangue!

Tudo isto dá carácter e as praças do mercado são muito visitadas por turistas que ali vão apreciar aspectos pitorescos das populações."

*Este texto foi escrito em meados da década de 1950.

[in Coronel António de Quadros Flores, Guimarães na última quadra do romantismo, 1898-1918, Tipografia Ideal, 1967, cap. XVIII, págs. 118-119]

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