Memórias: o Toural no início do séc. XX

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Exercícios dos bombeiros, no Largo do Toural, durante as Festas da cidade de 1908.
Fotografias do Estereoscópio Português, disponibilizadas por Belmiro P. Oliveira.

A publicação de memórias é uma prática, infelizmente, sem grandes tradições em Guimarães, apesar de toda a nossa riqueza historiográfica. Uma excelente excepção que confirma a regra é a obra Guimarães na última quadra do romantismo , 1898-1918, que reúne textos escritos na década de 1950 e inicialmente publcadas no jornal Notícias de Guimarães, nas quais o Coronel António de Quadros Flores nos deixou a descrição do Toural que aqui se transcreve:

"O Largo do Toural daquele tempo pareceria agora mais acanhado; contudo o aspecto era de muito maior amplidão.
Bastava para isso o recinto fechado e gradeado, as árvores de grande porte e sobretudo o trânsito e movimento serem muito mais reduzidos, para que o conjunto sobressaísse como um dos mais amplos recintos da, cidade, o que no entanto não correspondia à verdade.
Havia o Largo de S. Francisco e o do Campo da Feira, que ainda são mais amplos, mas o seu enquadramento é que lhe dava foros de praça principal de Guimarães.
Não falando nas duas características fachadas, que o bom senso tem conseguido conservar, com pequenos abortos pouco visíveis, era de facto uma espécie de sala de, visitas onde se reunia a melhor sociedade de Guimarães.
Ali se concentrava a actividade comercial, e também se via à tarde o que havia de representativo, desde a aristocracia, funcionalismo civil, militar e eclesiástico, até aos representantes da nascente grande indústria vimaranense, tendo como núcleo bem destacado o socalco da Casa Havaneza, do Bernardino dos Tabacos e depois do José Pinheiro, ao lado do Pereira dos “Rascantes”.
Naquele Largo, que já absorvia quase todas as actividades comerciais da cidade, que dantes tinham como eixo a rua da Rainha, havia negócio de tudo e sempre, activo e frequentado, já com aspecto modernizado para o tempo.
Logo na entrada, na esquina de Santo António, o botequim do Fernandes, depois crismado de “Café da Porta da Vila”, e único existente no Largo.
Nele se reuniam certos figurões do foro e profissões adjacentes à Justiça, o professorado do Liceu, representado pelo cónego José Maria, que convivia mais com o público, procuradores como o Jerónimo de Castro e outras pessoas que se entretinham no jogo do dominó.
Na sobreloja parece que de longe a longe se armava uma banca de “monte”, mais frequentada nas Gualterianas, nestas com jogo grosso desde o tostão às duas “c'roas” em pleno, cavalos e cruzes, que era o máximo de parada na roleta, sem ainda terem aparecido as “fichas”, que tudo ali era em metal sonante, vendo-se até as libras de ouro.
Na outra esquina o “Hig-Life” do Gonçalves, que era cunhado do Padre Roriz, com estabelecimento de modas e chapéus, no tempo em que toda a senhora não saía de casa sem chapéu, a seguir o velho Ferra, Pai do Almério, depois o Sousa Júnior no característico edifício do topo Norte, cujos baixos eram ocupados pela loja de mercearia e armazém, onde tirocinou o Francisco Costa, e fazia esquina para a rua de Paio Galvão a loja dos “Caixeiros”, com retalhos, chitas, cotins, morins e rendas.
Começava a outra face, a do lado de S. Pedro, pela loja do Vinagreiro que, depois de ter sido “café”, foi cedida para o Banco Nacional Ultramarino, e a casa do “Louceiro” ficavam no desvão antes da do notário João de Oliveira, que já tinha pertencido, com a do Vargas, ao fidalgo da Toural, num edifício condizente com a arquitectura do Largo e a prosápia do velho fidalgo perdulário, cujos últimos descendentes acabaram na miséria, um aqui corno cartorário da Misericórdia, e outro em Vizela vivendo duma magra pensão do que se lhe pôde salvar do passado fausto.
Já havia a loja do “Leque” do sr. Benjamim de Matos e a do Machado, onde hoje está o meu cunhado Paulino de Magalhães.
Além da Basílica só recordo a da esquina para as Lajes a do sr. Virgem dos Santos, o simpático “Parrameco”, onde, nela ,e em todas as mais lojas de negócio, quando ainda não havia horário de trabalho, se ia pelas oito da noite fazer as compras, hora esta em que havia mais freguesia nas lojas.
Depois era o topo Sul do Largo como está agora com o gradeamento para as Lajes, e só me recordo dos estabelecimentos dos srs. Barreira Freitas, o “Chafarica”, Pai do Pedro de Freitas, herdeiro directo do nome, que está agora na rua de Santo António.
Na esquina a casa e estabelecimento do “Luisinho das Máquinas”, homem alto, louro, tipo inglês, que cedia sempre a casa, a mais alta da cidade, para as demonstrações festivas dos Bombeiros.
Aquilo era um espectáculo muito apreciado e a que concorria quase toda a população, de noite à luz de um farol adquirido pelos Bombeiros, alimentado de petróleo e que lançava uma longa chama avermelhada, e parece-me que ainda estou á ver um bombeiro a dar à bomba de pressão do combustível para manter a iluminação. Os apitos – ti-tá, tá-tá-ti – do Comandante Simão Costa a ordenar o assalto ao alto edifício, os bombeiros a correr com as escadas dobradas, a desdobrá-las, a lançar os ganchos, a cavalgar a varanda a receber novas escadas, até atingirem o alto com a mangueira empunhada.
A “Magirus” a crescer para o alto pelas manivelas manuais, a grande, manga de salvação içada por uma espia o “salvamento” dos garotos que se prestavam a fingir de sinistrados, uns pela: manga, outros suspensos por cordas.
Depois as mangueiras a esguicharem a água das bombas, movidas pelas alavancas enormes a que pegavam dois bombeiros de cada lado, e alimentadas com água transportada em sacos de lona com que os assistentes faziam uma bicha desde o lago do Jardim.
A continência final e as estridentes manifestações da assistência perante a “retirada”, executada por alguns bombeiros com o “salto mortal” lá do último andar.
Nesse tempo não havia automóveis e poucas coisas eram mecanizadas, só os caminhos-de-ferro e os teares das fábricas de tecidos, de modo que os Bombeiros exerciam a sua acção com o esforço directo do seu corpo numa luta arriscada e heróica com que se distinguiram em vários incêndios, como o da rua de Santa Maria, na casa pegada ao palacete do Barão de Pombeiro, e depois no da drogaria da Porta da Vila, em que conquistaram a glória, verdadeira glória de salvar o semelhante, a mais alta condecoração – a da Torre e Espada.
Do seu quartel à rua de Paio Galvão, onde hoje estão os armazéns da Casa Pimenta Machado, saíam aqueles beneméritos e abnegados homens que voluntariamente se dedicaram à salvação pública.
Por isso eram, como o foram sempre e continuam a ser Venerados, estimados e acarinhados por todos os vimaranenses.
Estas eram as três faces do Largo do Toural, que se prolongava como uma alameda até ao fundo do campo de S. Francisco, a Feira do Pão, onde estava solitária e desamparada a estátua de D. Afonso Henriques.
No Jardim a Banda do 20, à uma hora da tarde, no Inverno, começava o seu concerto com a assistência da boa sociedade que tinha saído da missa do meio-dia, em S. Francisco."
[in Coronel António de Quadros Flores, Guimarães na última quadra do romantismo, 1898-1918, Tipografia Ideal, 1967, cap. XVIII, págs. 56-58]

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