Afonso Henriques: sombra e luz

A biografia do primeiro rei dos portugueses, Afonso Henriques, tem mais sombra do que luz. Na verdade, sobre o filho de Henrique e Teresa, sabemos muito pouco, apesar dos muitos milhares de páginas que já foram publicados sobre a sua vida e a sua acção política. Na primeira biografia que lhe foi dedicada, a Chronica de el-rei D. Affonso Henriques, de Duarte Galvão, impressa do início do século XVI, há mais literatura cavaleiresca do que História. Do outro lado do tempo, encontrámos uma biografia vinda a lume recentemente, cujo autor, Diogo Freitas do Amaral, foi forçado a preencher inúmeras lacunas com conjecturas verosímeis, mas para as quais não encontrou suporte documental. E não tenhamos ilusões: será sempre assim. Qualquer história da vida e dos feitos afonsinos será sempre hipotética, já que terá que ser completada, em boa parte, com o que nunca se saberá se aconteceu, mas que eventualmente poderia ter acontecido.
Começamos por não saber quando nasceu aquele que viria a ser o primeiro rei de Portugal. Sendo apontadas várias datas possíveis, entre 1100 e 1111, há hoje algum consenso em relação ao ano de 1109. Também não é seguro o local onde veio ao mundo. A tradição fala, a partir de Duarte Galvão, em Guimarães, mas há quem defenda que pode ter sido em Coimbra, em Viseu, mesmo em Astorga, hoje terra de Espanha, ou mesmo na Síria, junto do rio Jordão. À falta de melhor fonte, valerá a tradição. Porém, é altamente duvidoso que o infante Afonso tenha sido baptizado pelo Arcebispo São Geraldo (que já não estaria entre os vivos quando ele nasceu) na velha igreja de S. Miguel do Castelo (que foi construída bastante mais tarde, sendo sagrada em 1236). Também é pouco provável que tenha sido miraculado ainda em criança, por ter nascido aleijado das pernas, que de nascença trouxe encolheitas (citação da crónica do Conde D. Henrique).
É seguro que o célebre discurso que o Conde D. Henrique lhe teria feito, no leito da morte, que assumiria o carácter de um verdadeiro testamento político, não é mais do que uma lenda, já que, à data da morte de seu pai, ocorrida em Abril de 1112, Afonso Henriques não teria mais do que três anos de idade. É certo que Egas Moniz se encarregou da educação do infante, mas não se sabe de fonte segura onde ela decorreu. Por outro lado, no episódio mil vezes contado da ida de Egas Moniz com a sua família, em trajes pobres, descalços e de baraços ao pescoço, assumir junto de Afonso VII de Leão culpas que seriam de Afonso Henriques, não se sabe onde acaba a lenda e começa a História.
Não há dúvida quanto à data da Batalha de S. Mamede (24 de Junho de 1128), mas ninguém sabe dizer ao certo onde terá sido travada. É certo que o confronto não se deu no sítio que hoje conhecemos por Campo de S. Mamede, junto ao Castelo de Guimarães. Há bons argumentos para acreditar que terá sido em S. Mamede de Aldão, no lugar da Ataca, mas não existe nenhuma evidência documental ou arqueológica.
Já a suprema vilania que se aponta ao jovem Afonso, a prisão da mãe nas masmorras do Castelo de Lanhoso depois de derrotada em S. Mamede, não passa de lenda, tal como o episódio do Bispo Negro, que resultaria de um apelo de D. Teresa ao Papa, em que se queixaria da crueldade do filho. Em resposta, o Papa teria enviado o Bispo de Coimbra com a missão de ordenar que Afonso procedesse à libertação da mãe. Alegando que o Papa nada tinha a ver com as suas decisões, o príncipe teria expulso o bispo e nomeado um novo, que seria negro.
Conta-se que Jesus Cristo teria aparecido a Afonso Henriques antes da Batalha de Ourique, em 1139. O milagre de Ourique, que ajudou a sustentar a justificação divina da existência de Portugal enquanto reino independente, é um mito que começou a circular muito tempo depois de 1139. Aliás, a Batalha de Ourique, ao contrário do que se acreditou pelos séculos adiante, não se deu na povoação do Baixo Alentejo, às portas do Algarve, que conhecemos por aquele nome. Foi certamente noutro lugar, situado algures entre Leiria, então sob domínio português, e Santarém, ainda ocupada pelos muçulmanos.
Um outro acontecimento que forneceu argumentos poderosos para a sustentação da independência nacional foi a reunião das celebradas Cortes de Lamego, que teria ocorrido durante a primeira metade da década de 1140, em data incerta. Nelas se teria confirmado a aclamação de Afonso Henriques como rei de Portugal, corroborado o propósito de manter a independência de Portugal face a Leão e definido as regras de sucessão do trono. Todavia, tais Cortes nunca aconteceram.
De D. Afonso Henriques, o homem, e de muitas das circunstâncias que rodearam a sua existência, conhecemos muito pouco. Todavia, este desconhecimento não tem qualquer relevância na nossa História, nem na definição da nossa identidade nacional. Apesar de nunca terem acontecido, os factos acima enumerados tiveram uma importância vital no processo de afirmação, aprofundamento e defesa da independência de Portugal, por terem sido criações da literatura independentista que foram esgrimidas em momentos em que Portugal esteve em risco (por exemplo, nas crises de 1383-85 e de 1580-1640).
Ao longo da sua História, Portugal teve à frente dos seus destinos reis certamente mais luminosos do que D. Afonso Henriques, como D. João II, D. Filipe I ou D. José (por interposta pessoa, o Marquês de Pombal). Todavia, poucos duvidarão de que o primeiro foi o mais importante dos reis portugueses. Sem ele, Portugal nunca teria existido. Afonso Henriques, vivendo num tempo irrepetível, soube aproveitar a sua circunstância. Portugal, que resultou da determinação e da persistência da acção militar, política e diplomática do primeiro Afonso, é, antes de mais, uma criação sua.
O que nos ficou de Afonso Henriques foi este país. O resto, não é mais do que uma caixa de pedra com ossos que nada têm de importante para contar.

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