O Carnaval é um tempo de excessos, desregramentos, folias e bebedeiras, durante o qual se celebra a morte simbólica do que é velho e o subsequente renascimento colectivo. Consentidas pela religiosidade dominante como um breve momento de alegria e licenciosidade que antecede as sete semanas de tristeza e recolhimento da Quaresma, as práticas carnavalescas derivam dos velhos rituais de purificação que ocorriam no dealbar da Primavera, marcando o início do ano agrário. Não é por acaso que as gentes das nossas aldeias o chamam de Entrudo (do latim entroitus, que significa entrada).
Como quase todas as nossas festas tradicionais, o Carnaval também passa pela mesa. Desregrado por natureza, é marcado pelo desregramento alimentar: o Carnaval é pantagruélico — no Entrudo, come-se de tudo. É antecedido pelo Domingo Gordo, o seu dia é a Terça-Feira Gorda. Este é o tempo em que o mais generoso dos animais domésticos, o porco, é rei, se bem que rei morto, cabendo às suas orelhas o papel de principal figurante do farto manjar tradicional do nosso Entrudo, o cozido. Não será por acaso que, no Minho, as primeiras matanças do porco coincidem com o Carnaval.
Mas não ficam por aqui as iguarias carnavalescas. Em alguns lugares, como à volta de Pevidém, as moças juntavam-se à beira da estrada para oferecerem caldinhos de Carnaval aos rapazes, preparados com a carne gorda que pediam pelas portas. As mulheres mais velhas faziam o mesmo, dando caldo aos caretos e aos catraios. Em Moreira de Cónegos, eram as crianças que se costumavam juntar neste dia para irem fazer caldinhos para o monte.
No jogo complicado de inversões que se revela nesta quadra, também se troca de identidade. Escondidos sob trajos bizarros, com as caras desfiguradas com pinturas feitas com carvão ou com fuligem das panelas ou escondidos atrás de máscaras de pano ou renda, os homens vestem-se de mulheres, as mulheres de homens, os jovens assumem a aparência de velhos e os adultos assemelham-se a crianças, de cueiros e mamadeiras.
No Carnaval, os entrudos ou caretos percorrem os caminhos das aldeias, assumindo frequentemente atitudes provocatórias e ameaçadoras. Têm o mesmo aspecto dos espantalhos dos campos semeados: calças velhas e largas, casaco remendado, chapéu velho, socos de madeira, um pau na mão. Os que se aventuram a ir correr o Carnaval para as vizinhanças, arriscam-se a vir de lá enxotados com pedras, laranjas verdes ou ovos podres.
O fim das festividades carnavalescas está associado a uma paródia funerária, o Enterro do Entrudo, que assinala o encerramento dos folguedos e o início da contenção quaresmal. O facto de o funeral se realizar à noite integra-se no complexo jogo de inversões que caracteriza a quadra, já que, na vida real, os funerais depois do pôr-do-sol são interditos. Por outro lado, neste funeral sui generis, faz-se o enterro de um ente que, na verdade, ainda não morreu, já que só se finará após as suas próprias exéquias.
Neste cerimonial burlesco, que ainda ocorre em diversos lugares de Guimarães, parodia-se um funeral católico, com figurantes vestidos de padre, sacristão, coveiro, agente funerário ou testamenteiro, acompanhados pelo coro estridente das carpideiras, com as suas choradeiras e lamentações fingidas, à volta de um caixão de quatro tábuas, onde jaz um boneco de pano ou papel cheio de palha e bombas de Carnaval. Representa o Entrudo e o seu nome varia conforme os lugares: Pai das Orelheiras, Artur, Joãozinho, Entruido, etc. O cortejo, iluminado por velas e lumieiras, segue para junto de um rio ou ribeiro, onde o padre ou o testamenteiro lê as deixas do finado, um testamento em verso, carregado de críticas sociais e morais e de obscenidades. Finda a leitura, o caixão é lançado à água, chegando-se-lhe lume. Desce a corrente, por entre os estouros das bombas que lhe enchem o ventre, convertendo-se em cinzas até à ressurreição no próximo Carnaval.
As autoridades religiosas não costumavam demonstrar grande tolerância com esta paródia, que chegava a ser proibida. Era assim em 1884. Não obstante, como conta João Lopes de Faria, no Carnaval desse ano, “na freguesia de S. Miguel de Creixomil, alguns sujeitos, por malvadez ou embriaguez?, tiveram a fraca lembrança de parodiar um enterro religioso, e, com uma cruz, uma panela com água e um esquife, andaram pela freguesia a cantarolar simulando, os cânticos religiosos fúnebres. Isto foi ataque à religião do Estado e de encontro às expressas determinações da autoridade administrativa, a qual recebendo uma queixa contra tal facto estúpido tomou conta da punição dos autores”.
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