D. João I |
Em Guimarães conservam-se algumas das mais marcantes referências simbólicas da nacionalidade portuguesa: o Castelo, o feito de S. Mamede, a memória de Afonso Henriques. Mas também se guarda um símbolo da afirmação da independência em momentos em que esteve em perigo ou mesmo perdida: o pelote. É o que resta de um laudel (ou loudel) do último quartel do século XIV, uma peça de vestuário acolchoada que se envergava debaixo da armadura para impedir que os golpes atingissem o corpo. Pertenceu a D. João I, que o envergou durante a batalha de Aljubarrota e, depois da vitória, ofereceu à Senhora da Oliveira.
D. João I, como outros reis portugueses, tinha uma devoção particular pela Senhora de Guimarães. Aqui veio várias vezes em romarias e, ao que se conta, várias vezes perante a sua imagem se fez pesar em prata, contribuindo generosamente para o acréscimo do tesouro da Colegiada. Aquando do confronto de Aljubarrota, o Mestre de Avis encomendou-se à Senhora da Oliveira, afirmando ter agido como se das suas mãos tivesse tomado as armas que utilizou. Após a vitória, veio a Guimarães, e mandou depor as suas armas no altar da Senhora, dizendo: “Vós Senhora mas deste, vós as tomai e guardai”. Nessa altura, entre outras oferendas, deixou no altar da Colegiada a lança e o pelote que trazia.
Desde então, em cada ano, no dia 14 de Agosto, passou a assinalar-se em Guimarães a vitória das hostes do Mestre de Avis. Nessa celebração, a lança de D. João era colocada num dos arcos do Padrão da Senhora da Vitória (que, segundo tradição recente, lembraria a vitória dos cristãos, no reinado de D. Afonso IV numa outra batalha, a do Salado), pendurando-se nela o pelote. Na Colegiada formava-se uma procissão, que saía com a imagem da Senhora da Oliveira e percorria as ruas, indo pela Porta da Vila e regressando pela da Senhora da Guia. No altar que então se erguia no Padrão, celebrava-se uma missa de acção de graças, que incluía a prédica de um orador sagrado.
Procissões como esta tinham lugar em muitas outras terras portuguesas, assinalando a derrota dos castelhanos em Aljubarrota na véspera da Nossa Senhora de Agosto de 1385, mas terão sido interditas durante o domínio filipino. Não terá sido assim em Guimarães.
Ligado à confirmação da autonomia nacional em 1385, o pelote também será envolvido nas movimentações que conduzirão à restauração da independência em 1640.
Em 1638, com Portugal ainda sob domínio do rei de Espanha, o franciscano Frei Luís da Natividade, guardião do Convento de S. Francisco de Guimarães, foi o orador convidado da festa do pelote. O sermão que então proferiu, que seria publicado com o título Retrato de Portugal Castelhano, ficou nos anais da literatura de invocação patriótica. Dele disse Camilo Castelo Branco que era o melhor sermão em português que conhecia.
Utilizando uma linguagem carregada de imagens e de expressões simbólicas, o orador franciscano dirige-se ao pelote roto, pobre, esfarrapado e alanceado que ocupava o centro a celebração, transformando-o numa metáfora do Portugal daquele tempo: “O Reino que nessa roupa o invicto Senhor D. João nosso rei dedicou e sujeitou à Virgem da Oliveira, quando o vedes em tal estado, nele vedes também qual esteja o Reino”.
Um país velho e roto, mas não irremediavelmente condenado. Ainda poderia ressurgir: “Vejo-vos, pelote, velho e roto: vejo-vos atravessado com a vossa própria lança (…). Só me resta para consolação ver-vos diante desta Virgem da Oliveira, que se uma vez vos livrou da morte, vos pode ainda ressuscitar a nova vida.”
Conduzindo a atenção dos ouvintes através do cenário que o rodeava, Frei Luís da Natividade, apontando para a oliveira que estava naquela praça, recordou o milagre de 1342, que fez com que a árvore, ressequida havia muito tempo, voltasse a ganhar vida e a deitar ramos, quando ali foi colocada a cruz no Padrão de Nossa Senhora da Vitória. Assim como a oliveira, também o pelote (Portugal), podia ganhar nova vida: “Ainda pode haver vida para vós, ainda pode haver século florente, e tornardes neste a reverdecer, como essa [oliveira] reverdeceu ficando duzentos e cinquenta anos a esta parte sempre verde.(…)”
Neste sermão memorável, a dissertação à volta do pelote é pretexto para apresentar uma visão profética da restauração que não tardaria a chegar. A espaços, o pregador franciscano afasta-se da linguagem metafórica e figurada e é bastante explícito nas suas exortações de natureza patriótica: “Mas se quereis que viva, floresça, seja sempre verde, conservai-lhe a esta oliveira suas folhas, sua autoridade, seus foros, suas liberdades, seus privilégios (…).”
O laudel que D. João I envergou em Aljubarrota, por força do tempo e dos danos a que estava sujeito sempre que era manuseado e espetado numa lança, será hoje, provavelmente mais do que em 1638, um pelote roto, pobre, esfarrapado. Mesmo assim, pelo que representa, continua a ser o maior tesouro histórico que hoje se guarda no rico Museu de Alberto Sampaio.
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