As Memórias de Torcato

Cada geração se projecta no futuro com a identidade que busca no passado. É essa a razão pela qual a História se reescreve em cada tempo e carrega as marcas da circunstância em que foi passada ao papel. É assim, em especial, na chamada história local, que é o meio de comunicação de cada terra com o seu passado. É por isso que os livros de História são, eles mesmos, interessantes objectos de estudo para historiadores.

Guimarães, com a sua ligação umbilical à História, que preenche parte substancial da sua matriz identitária, possui obras historiográficas particularmente emblemáticas. De todas, a que mais se destaca é a monografia sobre Guimarães e a sua história do Padre Torcato Peixoto de Azevedo.

Torcato Peixoto de Azevedo nasceu em Guimarães, no dia 2 de Março de 1622. Era filho de João Rebelo Leite, sargento-mor, e de Isabel Peixoto de Azevedo. Presbítero secular, especialista em genealogia, terá deixado trinta e cinco volumes manuscritos sobre a vida de reis de Portugal e Castela, dos duques de Bragança e de Lorena, das casas reais de Castela e da Áustria e sobre as genealogias de famílias portuguesas. Deixou também as Memórias Ressuscitadas da Antiga Guimarães, onde tratou desta terra que afirma erguer-se no meio de tão excelente província de Entre-Douro-e-Minho, como pedra preciosa desta jóia, esmaltada de excelências.

O volume das Memórias do Padre Torcato estendem-se por 142 capítulos, o primeiro dos quais trata da primeira repartição do mundo, e limites da Europa. Seguindo a tradição da historiografia da sua época, iniciou a história de Guimarães pela origem do mundo, nos confins dos tempos, seguindo do universal para o local: começando pelo mundo, segue pela Europa, atravessa a Península Ibérica, chega a Portugal, avança sobre o Entre-Douro-e-Minho, para vir dar a Guimarães quando a obra já vai no seu capítulo 43.º, no qual fala da cidade de Briteiros, e seus bispos e sua destruição.

O que escreve a partir do capítulo 45.º (Da Fundação da Vila de Guimarães) tornou-se, nos séculos seguintes, na principal fonte de tudo quanto se publicou sobre Guimarães e a sua história. Assim sucede na célebre Corografia do Padre Carvalho da Costa, na parte que dedica a Guimarães, onde se transcreve quase literalmente aquilo que o Padre Torcato havia escrito algumas décadas antes.

Na apresentação que faz da obra, o Padre Torcato anuncia o programa que se propõe: decantar, em agradável estilo, as primeiras notícias da nossa antiga Araduca, e fundação da nova Guimarães, e sua igreja catedral real, e como ela foi colocada à Virgem Santa Maria, e o motivo que houve para lhe darem o título de Oliveira; medindo sua grandeza, contando seus vizinhos, enumerando as freguesias de seu termo, concelhos, e coutos, e honras de suas comarcas; edifícios, mosteiros, capelas, rios, pontes e fontes suas vizinhas; morgados e casas de seus nobres povoadores, privilégios, isenções e liberdades com que foram honrados de seus pais; caos e sucessos que na sua defesa, e do reino, sucederam.

Como todas as obras humanas, as Memórias do Padre Torcato ostentam as marcas do seu tempo. Apesar disso, continuam a ser uma fonte incontornável para o conhecimento de Guimarães e da sua história.

Torcato Peixoto de Azevedo faleceu há precisamente três séculos, em 23 de Junho de 1705. As suas Memórias Ressuscitadas da Antiga Guimarães aguardariam ainda 140 anos até à sua publicação. Dessa edição foi retirada recentemente uma versão fac-similada, publicada por Paulo Dias de Castro. O manuscrito, que se guarda na Biblioteca da Sociedade Martins Sarmento com outras obras do Padre Torcato, aguarda que dele seja feita uma publicação que corrija os erros de transcrição existentes na edição de 1845.

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