Por falar em projectos para o Toural...

A propósito da proposta de construção de um túnel e de um parque subterrâneo no Toural, que retoma, no essencial, um projecto que foi apresentado e defendido pela Câmara Municipal de Guimarães, em 2007, e que acabou por ficar pelo caminho, depois de um debate público muito aberto e participado, onde se esgrimiram argumentos que vejo agora repetidos, com alguns a dizerem hoje, muito convictamente, o contrário do que antes disseram com igual convicção, recordo um outro projecto para o Toural, que também nunca saiu do papel (em boa verdade, nem projecto chegou a ser, não passando de uma sugestão). Trata-se da célebre “Câmara do Mariano”, um edifício que andou enguiçado durante mais de quatro décadas.

Projecto de Marques da Silva para os Paços do Concelho de Guimarães (1916).

A história do edifício para os novos paços do concelho de Guimarães remonta aos primeiros dias de 1914 quando, em reunião da vereação Municipal, Mariano Felgueiras apresentou um conjunto de propostas de melhoramentos municipais, entre as quais constava a construção de novas instalações municipais. Foi criada uma comissão para escolher o local onde o novo edifício seria implantado. A escolha recairia sobre a Praça de S. Tiago, que deveria ser alargada, com demolições que também afectariam as ruas do Gravador Molarinho e do Espírito Santo. O projecto para os novos paços do concelho seria posto a concurso, de que sairia vencedor o projecto Ourique, do arquitecto Marques da Silva, que, segundo a descrição que se pode ler em O Comércio de Guimarães, era feito com bocados dos nossos principais monumentos, fazendo lembrar a história desta terra, não esquecendo absolutamente nada. Estava-se em finais de Novembro de 1916.

Passaram-se os anos e o edifício não arrancava. Não havia dinheiro para realojar os moradores das casas que deveriam ser demolidas e a ideia de o levantar na Praça de S. Tiago ia sendo cada vez menos consensual.

No dia 1 de Agosto de 1924, a Câmara aprovou os projectos de orçamento para a abertura de uma praça destinada à edificação dos paços do concelho e para a construção das fundações do novo edifício para os serviços municipais, que deveria alojar diversos serviços públicos, já não na Praça de S. Tiago, mas junto à saída para Fafe, no local onde hoje está implantada a Praça de Mumadona. A obra iniciou-se, mas começou a arrastar-se. Até que parou definitivamente em meados da década de 1930. A partir daí, seria recorrente o debate sobre a continuação das obras ou o seu abandono, em definitivo, e consequente demolição das paredes que já estavam erguidas. Até que, em 28 de Novembro de 1951, foi aprovada uma proposta de demolição, apresentada pelo vereador António Faria Martins, cuja execução ainda tardaria alguns anos. Só em 1955, quando se começou a erguer o edifício para o tribunal, é que se goraram em definitivo as expectativas dos defensores do projecto de Marques da Silva, que Mariano Felgueiras descrevia como a melhor obra de arte que jamais se projectara em Guimarães.

Por aqueles dias de 1955, a polémica sobre o edifício dos Paços voltou às páginas dos jornais. Mariano Felgueiras, que não desistia do projecto que sempre acarinhara, publicou no Notícias de Guimarães uma série de artigos, que assina como M., onde continua com a sua luta pelos Paços do Concelho. A 8 de Agosto de 1955, escrevia:

Pois a nossa luta continua; não esmorece. Não deixam que o edifício se conclua no lugar que lhe era destinado, mas vamos reconstruí-lo noutro sítio; ele não foi projectado para a praça onde se erguia, nem para a de S. Tiago, nem para qualquer outra; ele foi delineado na imaginação prodigiosa do grande artista, que nele tem a sua obra-prima, para a cidade de Guimarães; e a cidade é suficientemente grande; não é difícil encontrar, dentro dela, lugares adequados e onde, porventura, a sua beleza mais realce, sem ter a esmagá-lo o peso colossal da mole granítica dos agora chamados paços ducais.

Alguém de elevada competência a quem consultámos logo nos indicou cinco, mas há mais; em breve, e para começar, apresentaremos e defenderemos um outro ainda, o mais arrojado, talvez, contudo, para a nossa sensibilidade, o mais belo.

A promessa de Mariano tardaria alguns meses a ser cumprida. O novo lugar, o mais belo, onde propunha que se construísse o edifício que Marques da Silva projectara, é o Toural. Ficaria implantado no topo norte da praça, preenchendo todo o espaço ocupado pelos edifícios que lá se erguiam, que seriam demolidos, o mesmo acontecendo a troços substanciais da frente nascente da rua Paio Galvão e do lado do poente da rua de Santo António. Nas traseiras do novo edifício, seria rasgada uma nova artéria, que ligaria aquelas duas ruas. Esta sugestão teria o destino de outros projectos que têm sido avançados para a sala de visitas de Guimarães, nunca tendo saído do papel. Felizmente, digo eu: se tivessem sido construídos, estes paços do concelho não seriam mais do que um pastiche medonho, carregado de um revivalismo serôdio, a desfigurar o magnífico campo do Toural.

Fotomontagem com proposta de Mariano Felgueiras para a implantação dos Paços do Concelho (1955).
Aqui fica sugestão de Mariano, transcrita do Notícias de Guimarães de 20 de Novembro de 1955:


Uma sugestão
Disse aqui no último artigo publicado desta campanha pela construção dos Paços do Concelho que a luta continuava; que não deixaram que o edifício se concluísse na praça que se lhe destinara, mas que em qualquer outra bem e que um sítio havia da minha predilecção para o erigir, que em breve indicaria e defenderia.

Cumpro a promessa: esse sítio é o Toural.

Ninguém mo insinuou ou lembrou; assumo a plena responsabilidade da escolha, e tenho tanta confiança na beleza e grandiosidade do efeito da construção do edifício na nossa linda Praça do Toural, e sinto tamanho alívio, posso agora confessá-lo, por o ver liberto do peso colossal da formidável mole de pedra que, talvez com o propósito de o esmagar, ergueram em local sobranceiro àquele que se lhe destinara e onde se iniciara a sua já adiantada construção, que me convenço de que me não faltariam energia e força e meios para o fazer ressurgir, eu próprio, no local onde na minha imaginação já o vejo, se as circunstâncias me permitissem assumir esse glorioso encargo.

E quanto melhor do que eu não o poderia tentar realizar o actual Presidente da Câmara, na sua inegável boa vontade de servir esta nossa terra, como qualquer outro que venha a suceder-lhe e o iguale em bairrismo, capacidades de trabalho e firmeza para se impor em toda a parte que convenha na defesa dos direitos de Guimarães?

É frase feita no conceito de todos os vimaranenses que a Praça do Toural é a nossa sala de visitas. Está indicado que seja nela que se erijam os Paços do Concelho, onde elas, quando honrosas, terão de ser recebidas. Em nenhum outro sítio eles agora melhor podem ficar, seja qual for o aspecto sob que o problema se encare.

Para mais fácil compreensão desta maneira de se decidir definitivamente sobre a localização do edifício. acompanham estas considerações três gravuras; a da sua fachada principal, para que mais uma vez se admire a beleza e harmonia com que nele se simbolizam as tradições venerandas deste concelho, a da perspectiva que o Toural oferecerá depois do edifício concluído e a da planta da praça com a indicação do local onde proponho a construção.

O edifício faceará o lado norte da Praça, entre as ruas de Paio Galvão e Santo António. Desse lado da Praça, por feliz coincidência, mede justamente os 40 metros que terá a frente do edifício, segundo o projecto.

Ficará a sua frente orientada para o sul, a posição que melhor convém, em face da entrada principal da cidade, que é a da estação do caminho-de-ferro, servida por uma bela avenida e pela antessala, não menos bela, do Largo Moreira de Sá.

O alinhamento não coincidirá precisamente com o das edificações actuais; será recuado poucos metros, somente os necessários para ficar no prolongamento em linha recta do lado norte da Porta da Vila, depois desta ser alargada como está indicado na faixa ponteada da gravura. (Tudo o que nesta está ponteado é para ser demolido).

Aproveita-se, assim, a oportunidade de se acabar com o estrangulamento da passagem do Toural para a Rua da Rainha, aspiração dos vimaranenses, já antiga de muitas dezenas de anos.

A entrada da Rua de Santo António será também alargada, seguindo pelo nascente o alinhamento do mesmo lado do Toural.

Identicamente sofrerá um corte maior a entrada da Roa de Paio Galvão, com o que muito ganhará a perspectiva do edifício da Sociedade Martins Sarmento; esta, ainda mais aproveitará com à abertura da travessa que da Rua de Santo António dará passagem para a de Paio Galvão pelas traseiras dos Paços do Concelho.

É claro que desaparecem para a abertura desta travessa como para a construção dos Paços as primeiras casas do lado poente da Rua de Santo António.

Com todos estes cortes, não será, porém, diminuída a superfície actualmente ocupada por estabelecimentos comerciais; pelo contrário, será substituída com vantagem pela que lhe deverá ser reservada nas construções a fazer em face às traseiras dos Paços do Concelho.

Demorei desde Agosto a exposição então prometida deste plano porque quis reflectir; a ideia consolidou-se no meu espírito; estou pronto a defendê-la contra todos que, de boa fé e com seriedade entendam dever criticá-la.

Disse, nessa altura, que o plano era arrojado. É. Mas é belo, grandioso; que importa o resto, se viver é sempre avançar?

M.  [Mariano Felgueiras]

Planta do Toural, com implantação do edifício dos Paços do Concelho. As áreas cobertas a cinzento seriam espaços a demolir.

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2 Comentários

lince Ibérico disse…
"Apesar dos pesares"o edifício do Mariano não seria um mamarracho, como tantos que se têm construído em Guimarães.
Provavelmente, se tivesse sido construído no tempo em que foi concebido e no local para o qual foi desenhado (a Praça de S. Tiago), seria hoje um dos ex-libris vimaranenses. Mas, com tal construção, o Centro Histórico de Guimarães dificilmente seria Património Mundial... Se tivesse acabado de ser construído no local onde começou a erguer-se, sem destruição de outro património, seria um ex-libris, que se poderia estranhar, mas que acabaria por se entranhar, como a coca-cola do Pessoa. Já no Toural, construído na segunda metade do séc. XX, seria, aí sim, um mamarracho como outros que por aí se ergueram.