Carros preparados para o cortejo do pinheiro de 2018. Fotografia do Guimarãesdigital. |
Ó
Senhoras gentis, castas donzelas,
Esperança
da nossa mocidade,
Abandonai
as frígidas janelas,
Vinde
gozar connosco a liberdade!
[Jerónimo
de Almeida, Pregão Escolástico de 1931]
Aqui
há dias, logo depois de responder, no muro das
indignações em que se tornou o Facebook, a uma
pergunta de um amigo sobre uma eventual participação feminina na
Comissão de Festas Nicolinas, afirmando que nada lhe tinha
a opor e que até estava convencido de que a polémica deste ano (não
há Nicolinas sem turras...) andaria à volta desse assunto
(reconheci que me enganei: houve polémica com a Comissão, por
ser integrada por quem não tem direito a fazê-lo, por não ser
estudante), logo recebi um pedido de “amizade” que me
deixou curioso para ver que que dali poderia vir. Aceitei e não
tardei a receber uma mensagem privada do meu novo
“amigo”, que rezava assim:
Boa
tarde Sr. António Amaro das Neves.
Estou
lhe a enviar esta mensagem porque estou com algumas dúvidas sobre a
discussão que tem havido no Facebook .
Primeiro
gostaria de lhe perguntar o porquê de ter tanta certeza que a
comissão deste ano, 2018, iria dar tanta polémica. Quando vi este
comentário, perguntei me a mim mesmo se o senhor seria vidente ou
algo do género.
Segundo
gostaria de lhe perguntar se está a par sobre qual é o significado
das festas. Se não sabe eu explico lhe, assim muito por alto, temos
festas que são unicamente dedicadas a honrar e demonstrar todo o
amor que qualquer donzela merece.
Cumprimento,
Respondi
com a curiosidade e a humildade de quem está sempre
disposto a aprender com quem sabe mais. Interessando-me, há
quase quatro décadas, pela história e pela interpretação
do fenómeno das festas que os estudantes de Guimarães dedicam
a S. Nicolau, ignorava que tinham uma explicação tão
simples, como a de serem “unicamente dedicadas a honrar e
demonstrar todo o amor que qualquer donzela
merece”, pelo que solicitei esclarecimentos adicionais.
Infelizmente, o sábio que se propôs explicar-me o significado das
festas ficou mudo, guardando para si os segredos das
fontes da sua sabedoria.
Que
eu saiba, as Festas Nicolinas nunca foram dedicadas “unicamente” às
donzelas. Simplesmente, havia um momento, no dia maior das festas, 6 de Dezembro,
em que os estudantes mascarados, depois de circularem pelas
ruas da cidade com as suas danças e folias, se aproximavam
das janelas onde se postava a assistência feminina às
suas estúrdias, a quem ofereciam maçãs,
castanhas e doces, que entregavam com as suas
lanças. Por vezes, junto com a oferta, seguiam papéis dobrados
com juras de amor dirigidos às namoradas ou àquelas por quem os
seus corações suspiravam. A entrega das maçãs não era mais
do que um momento de todo o programa das festas e quem as
recebia eram moças solteiras e mulheres casadas, novas e velhas, e,
até, as doces freiras do Convento de Santa
Clara. Com o tempo, este cerimonial da entrega das maçãs foi-se
transformando numa espécie de representação do que se suponha ser o namoro à moda
antiga, com uma pitada de marialvismo (a propósito, recorde-se que os
estudantes que erguiam as suas lanças se apresentavam
montados em cavalos).
É
sabido que, com o correr dos anos, o dia maior das festas de
S. Nicolau entrou em declínio, tornando-se quase todo ele
desinteressante, com excepção do vistoso momento do alçar das
lanças para ofertar as maçãs. Ao mesmo tempo, passou a
ser identificado não como uma cena da vida real,
mas antes como uma reconstituição histórica que remete para um imaginário povoado por donzelas que, à janela, aguardavam a visão do objecto dos seus amores idealizados, tal como foi representado por Shakespeare na sua obra mais famosa, aquela
em que Romeu aparecia no jardim dos Capuletos, onde uma
suspirosa Julieta o aguardava na sua janela.
Há
muito que a entrega das maçãs é entendida e descrita como uma
representação alegórica, por se perceber que a expressão
romântica que a definiria já é obsoleta. Hoje já
não há donzelas (o que será, no século XXI, uma donzela?) que ficam
à janela à espera da aparição de príncipes encantados. Já lá
vai, há muito, o tempo em que as nossas raparigas corresponderam ao
desafio que lhes foi lançado pelo pregoeiro de 1931, que vai em
epígrafe a este texto.
A
entrega das maçãs é, apenas, uma representação, como
já há décadas percebeu Hélder Rocha, que a entendia como
uma recriação histórica de uma prática há muito
obsoleta, mas cuja continuidade defendia, como o disse
expressamente numa entrevista que concedeu a Rui de Lemos e A. Rocha
e Costa, para o jornal O Povo de Guimarães, nas vésperas
das festas Nicolinas de 1993:
Hoje
só forçosamente é que uma menina fica pendurada uma tarde inteira
numa varanda à espera da maçã do estudante. Não tem sentido
assim. Mas enquanto acto cultural tem.
Nesta
entrevista, o nicolino-mor retomava a linha de pensamento que tinha
desenvolvido uma década antes, num texto que publicou no mesmo
jornal, onde se lê:
Quando
frequentámos o Liceu de Santa Clara, na década de 30, em que os
seus alunos eram já os herdeiros desta remota tradição dos
“meninos do coro”, quase ainda existia a mesma distância ampla
nos convívios das donzelas com os rapazes do tempo.
Nas
turmas dos vários anos escolares, os sexos diferenciavam-se por um
número elevado de rapazes em relação ao das alunas. As donzelas
que estudavam faziam-no geralmente nos colégios, onde se recolhiam
quase sem contactos com o universo exterior, dando, quando muito, aos
domingos, a sua volta pelas Avenidas, bem vigiadas. pelas Freiras,
num desfile de duas a duas e vestindo o traje colegial.
Por
isso, como é óbvio, as “Maçãzinhas” foram pretexto
para muitos possíveis namoriscos. Isto até por que, no quotidiano,
os contactos com as jovens que não estudavam (e eram a maior parte)
eram igualmente escassos, verificando-se, quase sempre, para além de
alguns bailes da Páscoa ou de Fim de Ano, esquivamente, ao findar
das missas, enquanto papás e mamãs, por vezes, davam seus dedos de
conversa.
Evidente
é que, agora, são outros tempos. As Maçãzinhas estão
já bem longe de darem pretextos para amores. Estamos na época dos
trajes unissexo, da convivência plena, onde rapazes e raparigas se
igualam, curtindo, sem pejo, todas as horas boas que a vida lhes dá.
Ainda
agora passaram por nós um jovem casal bem enlaçado: ela,
descontraidamente, tirou-lhe dos lábios o cigarro que ele fumava,
meteu-o na sua boca, deu-lhe duas fumaças e restitui-lo,
sorridente...
Outros
tempos, realmente! As Maçãzinhas só se justificam
agora, pois como defesa de um património cultural...
A
interpretação de Hélder Rocha é uma boa base para uma reflexão
sobre o carácter das Maçãzinhas nos tempos que correm, com vista a
tentar encontrar resposta para uma interrogação que, no ano
passado, agitou muitas águas:
Devem
as raparigas participar nas Maçãzinhas?
Para
esta pergunta, não tenho uma resposta. Tenho duas: sim e não.
Defendo
que as estudantes têm todo o direito de participar nas festas
do dia de S. Nicolau, em completa igualdade com os estudantes,
em todos os outros números das festas, como já vai
acontecendo, assim como terão o direito de integrar a
Comissão de Festas, caso se candidatem e sejam eleitas (ainda estou
para ver com que base legal é que, nos tempos que correm, as
poderiam impedir de se candidatarem, com o argumento do
género, a eleições em que são eleitoras de pleno
direito). Nada tenho contra a sua participação no cortejo das
Maçãs, que até aplaudirei, por acreditar que
poderia contribuir para o revivescer daquele que era o
ponto alto das Festas Nicolinas, as exibições das
danças de rua e das folias de mascarados no dia 6 de
Dezembro (não é por acaso que, nos dias que correm, algumas
das maiores entusiastas das Festas são raparigas). No entanto, não
me parece que faça sentido irem levantar as lanças e entregar as
maçãs às “donzelas” que por elas esperam nas janelas (a não
ser que vão mascaradas de rapazes, algo que não atentaria
contra a tradição das Festas Nicolinas, em que não faltam elementos
de claro pendor carnavalesco característico do ciclo das festas de
Inverno em que se integram), por se tratar de uma
recriação etnográfica, chamemos-lhe assim, de um ritual que
decorria de um modo de vida que já não é o nosso.
Não
faltam, na cultura, na arte e nas festividades e tradições populares
exemplos em que é aceite como natural a diferenciação dos papéis
desempenhados pelos elementos femininos e masculinos. O caso da dança
será o de compreensão mais imediata: no tango, na rumba, na salsa, no merengue
na valsa e em quase todas as danças de salão ou folclóricas, ou
mesmo no ballet clássico (o que é um par de deux?),
cada género desempenha o seu papel e não me parece que esse seja um
motivo para se defender que se deixe de dançar como sempre
se dançou. No caso das festas populares, poderia dar inúmeros
exemplos de festas em que rapazes e raparigas desempenham papéis
diferentes, sem que se cogite a sua alteração, de que
resultaria, inevitavelmente, a perda das suas identidades.
Dou dois exemplos: os caretos de Podence e as mordomas das festas de
Viana. Uns são homens, as outras são mulheres, e eu nunca ouvi
classificar estas manifestações como atentatórias da igualdade de
género, porque todos percebem o seu carácter festivo e simbólico. É do mesmo modo que entendo que a entrega das maçãs das Festas
Nicolinas, que, repito, hoje não é mais do que uma
representação alegórica, só faz sentido se continuar a ser
o que é.
De
tudo do que disse antes, espero que fique claro que, de
todo o programa das Festas Nicolinas, o cerimonial da entrega das maçãs
é o único em que faz sentido a distinção de papéis entre rapazes
e raparigas, tendo presente a ideia de que se trata de uma
representação ou, como bem notou o nicolino-mor Hélder
Rocha, de um acto cultural.
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