A destruição do miolo do quarteirão da Caldeiroa-Camões segue imparável. Assim também seguem as interrogações e as perplexidade de quem, por mais que tente, não consegue perceber a razão de ser desta destruição.
Proponho agora uma (re)leitura dos documentos que a Câmara Municipal de Guimarães, muito a contra vontade, divulgou no final de Outubro. Pode ser enfadonha, mas será muito instrutiva, acreditem. O processo é sinuoso e labiríntico, podendo ser comparado a uma espécie de puzzle onde faltam peças e onde há peças que, manifestamente, não encaixam. Este é um manifesto de falta de transparência e de um modo de fazer política que não engrandece a democracia.
A autorização para a abertura do procedimento para a encomenda do
projecto foi concedida pela vereação em Setembro de 2011. O projecto tem a
data de 2013. As sondagens arqueológicas iniciaram-se em meados de Novembro de
2014. Pela leitura do seu relatório preliminar, datado de 19 de Dezembro do mesmo ano,
percebe-se que não tiveram como objecto a área do complexo industrial da
Fábrica de Curtumes da Caldeiroa, no seu todo, limitando-se à prospecção dos “antigos tanques de curtumes e as
estruturas de apoio à curtimenta da fábrica da Caldeiroa”, tendo-se procedido a
“4 sondagens de diagnóstico distribuídas na área correspondente ao
local de implantação do conjunto de tanques de curtumes”, que verificaram “a conservação, ainda que não
integral, do conjunto de tanques representados na planta de 1949, assim como
das estruturas de apoio à curtimenta (fulões)”. O relatório propõe que sejam
adoptadas, “caso seja construído o futuro parque de estacionamento de Camões”,
medidas de minimização que previnam o “risco de afectação dos tanques”
decorrente da demolição da “estrutura existente”, ou seja, da Fábrica de
Curtumes da Caldeiroa.
Este
relatório foi analisado pelos serviços da Direcção Regional da Cultura do Norte
(DRCN), aquando da apreciação do projecto do parque de estacionamento, em
meados de 2015. Lê-se no parecer do técnico superior daqueles serviços que
analisou o processo, com data de Maio de 2015:
Quanto
a nós o valor patrimonial das estruturas em causa é muito relativo e não devem
sobretudo ser encaradas como peças autónomas, mas sim parte de um conjunto que
é a fábrica em si mesmo. Preservar os tanques de per si não é, quanto a nós, de
grande pertinência patrimonial. A fábrica da Caldeiroa tem origem nos anos
trinta do século passado e laborou até a década de setenta. O significado
patrimonial da unidade é pois limitado.
De
maior pertinência patrimonial e particularmente do ponto de vista arqueológico,
são os logradouros das áreas habitacionais a serem afectadas pelo projecto,
onde poderão ser identificados vestígios arqueológicos, à semelhança de outras situações
Idênticas ocorridas em Guimarães.
Mais tarde, em 18 de Maio de 2016, a DRCN autorizou condicionalmente
a construção do parque de estacionamento. As condições a cumprir eram as que
constavam em parecer técnico, onde se lê:
Sobre
a pretensão já nos pronunciámos anteriormente considerando que “do ponto de
vista arqueológico já foram efectuadas sondagens de avaliação prévia mas que se
referiram exclusivamente à existência de uma antiga unidade industrial (Fábrica
da Caldeiroa)”, sendo que o interesse patrimonial do local e especificamente no
que se refere ao potencial da componente arqueológica, este não se limita à
unidade industrial de curtumes. De resto, e conforme então mencionado, “a área
total abrangida pelo projecto extravasa em muito a área já sondada, sendo que
subsistem muitas incertezas quanto à possível existência de outros vestígios
arqueológicos”.
Mantemos
pois a posição manifestada anteriormente, considerando que “seja previsto um
competente programa de sondagens arqueológicas para a área de intervenção do
projecto, bem como um acompanhamento arqueológico geral da obra.”
A
viabilidade do projecto de construção do parque de estacionamento depende, na
nossa perspectiva, de uma avaliação arqueológica prévia do local, a qual
possibilite a identificação atempada de eventuais realidades associadas à
ocupação antiga de Guimarães e sobre estas serem tomadas decisões conducentes
ao seu cabal estudo, salvaguarda e/ou integração no projecto de arquitectura.
Planta da Fábrica de Curtumes da Caldeiroa, de 1949 |
Em 25 de
Julho de 2016, a Câmara Municipal de Guimarães contratualizou com a empresa Archeo’estudos-Investigação
Arqueológica, Lda para a prestação de serviços de “sondagens arqueológicas no
perímetro destinado ao parque de estacionamento de Camões”, pelo preço
contratual de €50.700,00, com um prazo de execução de 60 dias. No dossier que a
autarquia disponibilizou, nada se informa acerca dos resultados daqueles trabalhos
arqueológicos. Entretanto, ainda antes do início destes trabalhos, já a Câmara
tinha deliberado dar início ao procedimento para a empreitada de construção do
parque de estacionamento. O último dia para a apresentação de propostas seria 1
de Março de 2017.
Foi já depois daquela data, a 20 de Março, que a Câmara enviou à
presidente da Comissão Nacional Portuguesa do Conselho Internacional dos
Monumentos e dos Sítios (ICOMOS-Portugal) um pedido de assistência técnica para
“preparar os estudos de suporte científicos do alargamento da área classificada
pela UNESCO”, com a proposta de inclusão da Zona de Couros. No pedido não há
qualquer referência ao projecto do parque de estacionamento, apenas se fazendo
menção a “uma avaliação de novos procedimentos e actuações bem como a sua compatibilidade
com os critérios necessários para a Zona de Couros”. Na sequência deste pedido,
realizaram-se em Guimarães duas reuniões de trabalho em que participaram responsáveis
do ICOMOS Portugal e do Gabinete de Couros:Sítios Patrimoniais. Na primeira,
realizada a 18 de Abril, estiveram presentes dois vice-presidentes do ICOMOS-Portugal
(Ana Paula Amendoeira e José Aguiar). Na segunda, que aconteceu a 31 de Julho, em
que aquele organismo fez-se representar pela sua presidente, Maria Magalhães
Ramalho, foi dada particular atenção à “documentação associada a uma proposta
de parque de estacionamento a implantar num quarteirão inserido na referida
Zona de Couros”, nomeadamente ao relatório das sondagens arqueológicas. Na mesma
altura, foi visitada a “zona afectada directa, ou indirectamente, pelo projecto”.
Entretanto, a 11 de Maio, enquanto decorria esta avaliação, a Câmara deliberou adjudicar a
empreitada de construção do parque de estacionamento à firma HCI — Construções,
SA.
Destas visitas dos responsáveis do ICOMOS-Portugal, resultou um parecer formal, subscrito pela respectiva presidente,
cuja conclusão vale a pena ler com atenção:
A
salvaguarda de Couros obrigou a uma delimitação precisa tanto da área do bem
proposto como da sua zona de protecção, integrando, desde Maio do corrente ano,
a Lista Indicativa de Portugal ao Património Mundial.
Consideramos
que a ampliação da classificação de Guimarães para abranger o conjunto de
Couros é desejável e faz todo o sentido pois a cidade mais formal de Guimarães
desde sempre se relacionou com a cidade produtiva de Couros, ambas crescendo e
transformando-se em conjunto, pelo que é inteiramente coerente promover uma
ampliação da área inscrita na Lista do Património Mundial de modo a incorporar
Couros.
O
essencial de Couros ainda persiste, apesar de algumas zonas deste complexo
terem sido afectadas ou comprometidas por demolições ou intervenções
descaracterizadoras, como sucedeu na zona onde recentemente foi construído o
Pingo Doce, existindo o perigo de as áreas periféricas poderem ser afectadas
por novos projectos de excessiva edificação. Tal é certamente o caso do novo
projecto de parqueamento automóvel de grande dimensão que irá implicar, tal
como foi analisado, fortes alterações no interior de todo um quarteirão situado
em plena Zona Especial de Protecção do Centro Histórico-Património Mundial. Estas
alterações irão ocorrer tanto no subsolo, como no edificado e mancha verde
existente, verificando-se, pela análise do projecto e reconhecimento do local,
que este poderá provocar a descontextualização, senão mesmo a destruição de
elementos com valor cultural e arqueológico. Refira-se que um dos problemas
essenciais deste tipo de intervenções é que as alterações que provocam são
irreversíveis, ocasionando o desaparecimento de relevantes elementos ou
contextos históricos visíveis no presente.
Importa
referir que, contrariamente ao que a proposta de parque de estacionamento
propõe, têm vindo ao longo dos anos a ser desenvolvida uma estratégia de
reabilitação urbana para o mesmo território que se destaca pela concretização
de projectos que demonstram uma especial preocupação em compatibilizar novos
usos com o património existente, adequando escalas e tipo de intervenções, como
por exemplo o caso da antiga fábrica Âncora reconvertida em Centro
Ciência-Viva.
A
louvável intenção da Câmara de Guimarães de incluir na lista do património
mundial da UNESCO o complexo de Couros, pressupõe que seja possível garantir a
sua salvaguarda futura, incluindo nela a gestão complexa de uma vasta Zona
Especial de Protecção. O principal problema que hoje verificamos é o eventual
impacte que novos projectos possam vir a ter no Bem classificado e respectiva
ZEP, bem como a necessidade de assegurar a capacidade de integração e/ou de
reversibilidade destes mesmos projectos, sempre que incidam sobre as áreas
protegidas. No caso do parque de estacionamento da Caldeiroa, não só ele atinge
directa e irreversivelmente a ZEP do Bem actualmente classificado, como se
apresenta incompatível com a proposta de extensão do mesmo para a Zona de
Couros, nomeadamente por se incluir exactamente no perímetro da extensão que se
está a propor classificar.
Assim
sendo o ICOMOS-Portugal afirma a sua total disponibilidade para continuar a
contribuir para que a Zona de Couros possa vir a ser integrada na classificação
que já hoje a cidade de Guimarães tão merecidamente possuiu, mas, pelo que
ficou exposto, não pode concordar com um projecto que sem dúvida irá afectar
irreversivelmente esse mesmo Bem.
Sobre estas conclusões — que, podendo ser discutíveis, são
criteriosas e fundamentadas —, a (à altura) responsável pelo Gabinete de Couros
lavrou um parecer inusitado, em que afirma que o documento “contém tantas
contradições e erros que sobre isso nem me dou ao trabalho de contraditar”.
O parecer do ICOMOS-Portugal tem a data de 28 de Agosto de 2017,
mas só foi divulgado, por pressão pública, a 27 de Outubro, depois das eleições
autárquicas, em cuja campanha o projecto do parque serviu de bandeira bandeira à candidatura que saiu vencedora (com direito a um vídeo em realidade virtual, que seria interessante saber com que recursos é que foi produzido).
Entretanto, em 10 de Agosto de 2017 tinha sido entregue à DRCN um perdido de autorização para trabalhos arqueológicos, “relativo à avaliação por sondagens da
área destinada ao Parque de Estacionamento de Camões”. A notificação de que este pedido tinha recebido parecer favorável do Subdirector Geral do Património Cultural está
datada do dia 13 de Setembro. No dossier da Câmara consta que as sondagens se iniciaram “na semana de 18 a 24 de Setembro”. Não sabemos mais deste processo, apenas que dava
resposta a uma das condições colocadas pela DRCN no despacho de aprovação
condicionada de Fevereiro de 2016.
Em Agosto de 2017 estavam a ser feitas sondagens arqueológicas no interior do quarteirão, como o mostra a fotografia que vai acima, retirada do blogue Não à morte da Caldeiroa, datada do dia 8 daquele mês. Resta saber quem as fez e quem as autorizou. |
De onde se conclui que há neste processo muito de inovador e outro tanto de esquisito. A começar pela estranha e incompreensível sequência cronológica
dos factos conhecidos. Vai a cambalear, ao ritmo dos tropeções. Primeiro decide-se avançar
com uma obra de grandes dimensões num espaço Zona Especial de Protecção do
Centro Histórico-Património Mundial, ele próprio em processo de candidatura à
classificação como Património Mundial. Depois, mandam-se fazer estudos
arqueológicos, em espaço cirurgicamente confinado, para avaliação de impactos
patrimoniais. Avança-se com o procedimento para a adjudicação da empreitada
para, a seguir, solicitar ao ICOMOS-Portugal uma avaliação da “sua compatibilidade
com os critérios necessários para a Zona de Couros”. A avaliação técnica foi
feita, o parecer dela resultante é taxativo na afirmação de que a obra é “incompatível
com a proposta de extensão do mesmo [bem actualmente classificado] para a Zona de Couros”. Mas não produziu qualquer efeito.
Enquanto a caravana passa, a obra continua, tal como o inicialmente previsto.
Afinal, quem disse que “nós, técnicos, damos pareceres, o
executivo decide”, é capaz de ter razão.
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