Arqueologia e vinho verde

Jean Louis Armand de Quatrefages de Bréau (1810-1892)
No início do Outono de 1880, reuniu-se em Lisboa o Congresso de Antropologia e Arqueologia Pré-Históricas. Alguns dos sábios que nele participaram, fizeram uma incursão ao Norte para visitarem a Citânia de Briteiros. O padre António Caldas dá notícia da visita no seu “Guimarães — Apontamentos para a sua História”, publicado no ano seguinte: 
Pelas 10 horas da manhã do 1º de Outubro de 1880 chegaram a Briteiros, a fim de examinarem as ruínas da Citânia, alguns sábios estrangeiros, dos que tinham vindo celebrar o congresso antropológico, inaugurado a 20 de Setembro do mesmo ano.
Recebidos aí pelo indefesso explorador Martins Sarmento, câmara de Guimarães e administrador do concelho, principiaram a ascensão científica pelas 11 horas, ao som de duas bandas marciais e foguetes e por entre duas alas de camponesas aspergindo flores.
Os pontos mais notáveis daquelas ruínas estavam marcados com postes embandeirados e no cimo do monte levantava-se um tablado de 60 metros de comprido por 3 de largo, onde estavam dispostos por grupos de metódica classificação os objectos de significação histórica ali encontrados.
Depois de examinados, concordou-se em geral que as explorações da Citânia eram de subidíssima importância para a resolução de muitas questões pré-históricas, e que elas completavam, até certo ponto, dados indispensáveis para a solução de problemas desta ordem, apresentados em virtude de explorações feitas em Itália e na Bretanha.
Assentou-se que a Citânia apresentava evidentes vestígios de três civilizações distintas e talvez sucessivas: uma céltica ou pré-céltica, e outra romana, e uma terceira anterior, não definida pela confusão dos elementos apresentados para a sua dedução.
Quinze dias depois, o jornal republicano francês Le Voltaire, criado para apoiar Gambetta e dirigido por Jules Laffitte, que contava entre os seus colaboradores com figuras como Emile Zola ou os irmãos Goncourt, publicou uma reportagem da excursão dos congressistas à Citânia. O texto é assinado por um tal Gonçalo de Córdova e é muito curioso, não tanto pelo que descreve das ruínas arqueológicas descobertas por Martins Sarmento, mas mais pela descrição que faz do jantar que foi oferecido no Hotel Real de Braga, em que o cozido à portuguesa, as frigideiras braguesas e “montanhas de carne assada no espeto” fizeram parte de uma longa série de iguarias que se encerrou com arroz doce, frutas portuguesas e queijo da serra. Mas o protagonista do repasto foi um ilustre desconhecido, para quase todos: o vinho verde, fracomas demasiado agradável”, no dizer do articulista. Correu farto, ao que se percebe, dando nas vistas a “quantidade respeitável” com que terá matado a sede “um dos membros femininos do congresso”. Mas não terá sido a única. No dia seguinte, já em Briteiros, quando se discutia o significado da Pedra Formosa, procurou-se o célebre naturalista e antropólogo francês Armand Quatrefages para saber da sua opinião sobre tão misterioso assunto. Não havia sinais dele. Tinha ficado em Braga, impedido pelo vinho verde da véspera…
Esta reportagem foi publicada, algum tempo depois, no jornal vimaranense Religião e Pátria, de onde a transcrevemos.
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De Lisboa à Citânia
Sob este título veio inserta no Voltaire, em 15 de Outubro último uma correspondência de Lisboa, datada de 12, e subscrita por Gonçalo de Córdova, pseudónimo por certo de um cavalheiro muito distinto, — correspondência de que extractámos os seguintes fragmentos, que temos por muito curiosos.
Fala-se além disto ali, tanto do ilustrado e incansável dr. Martins Sarmento, como do nosso antigo mestre e sempre erudito professor Pereira Caldas; e de tal modo, que nós que tanto devemos, sentimos prazer em trasladar e dar a conhecer quanto são ambos apreciados.
Eis a correspondência:

“Os membros do congresso antropológico partiram para Braga a 30 de Setembro; e ali chegaram no mesmo dia à tarde.
Braga dista duzentos e sessenta quilómetros de Lisboa.
Tanto que o comboio chegou à gare do Porto, os ilustres viajantes encontraram ali as autoridades administrativas, a câmara municipal e grande quantidade de indivíduos, que tinham concorrido para os saudar.
O trajecto do Porto a Braga é delicioso. De cada lado da via estendem-se, em amplo horizonte, florestas de castanheiros, colinas e ondeantes mares de searas, entrecortados por verdejantes encostas.
As paisagens da província do Minho não cedem primazias, pelo pitoresco, às dos celebrados vales da Suíça.
Na gare de Braga não havia tanta gente quanta na do Porto; todavia ali encontrámos o doutor Pereira Caldas, professor muitíssimo erudito e amável, o qual nos conduziu ao Hotel Real aonde, pela primeira vez, os nossos hóspedes comeram um jantar verdadeiramente português, com o clássico prato do cozido (lombo de vaca com batatas, nabos, legumes, salpicão e presunto); as célebres frigideiras (tortas feitas de um modo especial, o que só se comem em Braga); enormes peças de assado (montanhas de carne assada no espeto), e uma longa série de iguarias, muitíssimo apetitosas.
À sobremesa foi saboreado o arroz doce; e serviram-se as magníficas frutas portuguesas, o esplendoroso queijo da serra da Estrela; e tudo isto condimentado com vinhos do país.
Estes últimos foram muito apreciados, e mais especialmente o vinho verde do Minho, de que um dos membros femininos do congresso bebeu uma quantidade respeitável.
O vinho verde é muito fraco, e tem um sabor ligeiramente ácido, porém demasiado agradável. Não é servido à mesa em copos, porque a maior parte da gente bebe em amplas infusas de louça portuguesa.”
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“Na madrugada do dia seguinte, depois de termos examinado alguns monumentos e algumas curiosidades, em que abunda Braga, (a antiga Bracara Augusta dos Romanos), os excursionistas partiram para as Caldas das Taipas, pequena aldeia afamada pelas suas águas termais.
A três quilómetros desta localidade, eleva-se uma montanha cuja ascensão fizemos a pé.
Havia um sol africano! Mas que deliciosa excursão!
O caminho estava todo ornado de mastros com bandeiras.
Aqui e ali, grupos de formosas e soberbas camponesas, lançavam sobre os viajantes punhados de flores e pétalas de rosas.
À chegada dos congressistas estrondeou uma formidável salva de morteiros.
A filarmónica das Caldas das Taipas entoou com enérgico entusiasmo uma marcha guerreira. E nós subimos!
Chegámos ao planalto da célebre montanha da Citânia, construção pré-céltica na opinião dos sábios.
O snr. Sarmento fizera dispor sobre uma longa mesa as riquezas arqueológicas, que ali tem explorado e encontrado; e explicou a sua proveniência aos membros do Congresso. Todos o rodearam.
Procura-se, porém debalde, o sr. Quatrefages. Tinha ficado em Braga, e ao que parece impedido, pelo vinho verde, de tomar parte na ascensão.
Visitaram-se em seguida os monumentos reedificados pelo sr. Sarmento; e permaneceu-sse muito tempo a discutir a origem dum monólito — a pedra formosa; discussão a que só pôde pôr termo o magnífico lunch, que o nosso generoso hospedeiro fizera preparar, e durante o qual se levantaram muitos brindes.
Regressámos em seguida a Braga; e às quatro horas da tarde tomámos o comboio de Lisboa.”
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Tal é, da referida correspondência, a parte que diz respeito à excursão no Minho, efectuada pelos ilustres membros do Congresso antropológico.
Parecem-nos tão lisonjeiras as palavras com que se descreve esta excursão em Braga e na Citânia, (se bem que muito resumidamente), que temos por muito justo dar-lhes publicidade.

Alfredo Campos.
Religião e Pátria, Guimarães, 8 de Janeiro de 1881

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