Diz
lenda antiga, vinda lá das profundezas da Idade Média, que, cansado
de guerras, um bravo guerreiro godo, homem bom, nobre, mas
afável; sábio, mas humilde; piedoso e dócil, mas corajoso e
guerreiro, disse adeus às armas e veio para o sítio pitoresco
e fértil da bela província do Minho, o paraíso da Lusitânia. Aí,
nas terras onde um dia haveria de nascer Guimarães, se fez pastor.
Chamava-se Wamba e assim viveu, em pastoril remanso, até ao dia em
que chegaram de longe uns cavaleiros que lhe disseram que fora
escolhido para rei do seu povo. Aos que, postos de joelhos, lhe
ofereeiam o diadema real, respondeu:
“Não
eu, acreditem-me. Deixem-me cuidar das minhas preocupações com a
agricultura e procurem alguém que seja suficientemente tolo para
querer trocar o sossego e a segurança de uma vida pacata pela
canseira e o perigo de um trono.”
Mas,
como os cavaleiros não davam mostras de desistir facilmente dos seus
intentos, Wamba,irritado para além da medida pela insistência
deles, gritou, ao mesmo tempo que fincava no chão a sua longa lança
(aqui, há alguma divergência nas versões que se contam desta
lenda, havendo quem jure que se tratava de um aguilhão):
“Eu
vos digo, cavaleiros, que podeis gritar até ao dia do juízo final,
se assim vos agrada, mas até que a minha velha e rija lança se
torne numa árvore, eu nunca serei o rei dos godos, assim me ajude a
Virgem Santíssima e todos os santos na minha extrema necessidade.”
E o
milagre deu-se.
Todos
os olhos se voltaram ansiosamente para Wamba quando, para sua
surpresa, viram a velha lança dura e sem seiva, que Wamba tinha
enterrado no chão, brotando folhas e lançando ramos.
E
assim Wamba se fez rei dos godos, sucedendo a Recesvindo. A árvore
que brotou do pau da sua lança é a oliveira que ainda lá está, na
Praça Maior de Guimarães.
Não
sei porquê, ou talvez saiba, quando li a lenda de Wamba e a
oliveira, contada num livro inglês do século XIX, e imaginei
mentalmente a cena e as personagens que a compunham, figurei o rosto
do guerreiro-pastor com o retrato do Eduardo Magalhães. Não é que
ele seja guerreiro, embora tenha andado na guerra, mas sim um erudito
que um dia se retirou lá para o seu Portelo, onde já plantou muitas
árvores e pastoreia cabras anãs e outras bichezas.
Julgo
que nunca ninguém se terá lembrado de subir ao Portelo para chamar
o Eduardo para ser rei de um país qualquer, mas acredito que, se
alguém ousasse fazê-lo, ele não cairia no equívoco de Wamba e era
homem para dar ao cajado um uso bem diferente do da lenda.
No
intervalo do pastoreio e das lavouras, o Eduardo vai-se dedicando
àquilo que mais ninguém faz como ele: o estudo e a divulgação do
nosso património musical, desde os velhos livros de cantochão às
modinhas de tradição popular.
No
último ano, brindou-nos com o resultado de uma investigação que,
ao longo de vários anos, permitiu que as cabras tivessem mais paz do
que o costume. Tem título comprido, como os livros de antigamente
(Hinos e marchas históricas de Guimarães de colectividades e
instituições vimaranense antigas da cidade tocadas pela extinta
Banda da Sociedade Musical de Guimarães mais conhecida por 'Banda
dos Guises'), mas é muito mais do que o que o título indica. É
a história da Guimarães das últimas décadas do século XIX e das
primeiras do século XX contada entre os acordes dos hinos e das
marchas que eram compostos para celebrar a cidade, as suas
instituições (Sociedade Martins Sarmento, Sociedade Musical,
Bombeiros, Associação Artísticas, Vitória...), as suas
personalidades (Martins Sarmento, Martins Sarmento), as suas festas
(Nicolinas, Gualterianas, peregrinação à Penha...), o progresso
(Hino à locomotiva). A anteceder o fac-símile de cada uma das
peças, alguns deles de difícil leitura, o autor oferece-nos um
texto onde faz a contextualização em que desenha o respectivo
enquadramento histórico e nos faculta informações preciosas acerca
das obras e os dados biográficos dos seus autores. Da erudição, do
rigor e da dedicação que o autor colocou ao longo do processo de
investigação (de que fui testemunha privilegiada), facilmente se
aperceberá o que mergulhar nas páginas desta obra, que recomendo
vivamente a quem ainda a não leu. São cerca de três dezenas de
peças musicais, produtos de um tempo em que nada de verdadeiramente
importante acontecia sem que se lhe erguesse um hino, que nos ajudam
a compreender melhor a história de Guimarães. A edição é da
Sociedade Musical de Guimarães, no âmbito da Capital Europeia da
Cultura. A coordenação é de Armindo Cachada. As partituras podem
ser lidas, em formato mais legível, em www.musicave.org.
Agora,
para aqueles que , como eu, não sabem ler uma partitura, cumpre dar
o passo que se impõe a seguir: pôr tudo aquilo em modos que se
possa ouvir.
Do
musicólogo que pastoreia cabras anãs no Portelo, ficamos agora a
aguardar, com expectativa, o resultado do seu estudo sobre os sons
nicolinos que nos está prometido.
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