Pregões a S. Nicolau (67): 1912


Milagre de S. Nicolau

No ano de 1912, consumou-se o que alguns defendiam desde a instauração da República: a Academia vimaranense decidiu, democraticamente, deixar de promover as velhas festas a S. Nicolau, substituindo-as por iniciativas de carácter filantrópico . A notícia foi dada pelo Comércio de Guimarães de 15 de Novembro:
A Academia Vimaranense reunida na sua maioria resolveu este não fazer as festas Nicolinas, limitando-se apenas a realizar um espectáculo de gala no dia 1.º de Dezembro, comemorando assim a data gloriosa da independência de Portugal.
O produto líquido do espectáculo reverte em benefício da fundação de uma caixa filantrópica.
No entanto, as festas voltariam a acontecer, embora com o seu programa alterado. Dez dias depois daquele anúncio, outro jornal, o Imparcial, revelava que “não obstante os boatos que correram e avisos a alguns jornais, do contrário, há festas de S. Nicolau”. Os estudantes “aposentados”, com apoio dos estudantes vimaranenses que frequentavam cursos superiores no Porto não aceitaram a decisão dos novos de extinguirem as festas e decidiram organizá-las.
Neste ano, declamação do pregão, escrito por Delfim Guimarães e lido por Alberto Virgínio Baptista, foi antecipada para o dia 1 de Dezembro, que calhou a um domingo, para permitir a participação dos que estudavam no Porto. Como facilmente se imagina, o texto do pregão de 1912, além das alfinetadas à governação do velho burgo vimaranense, está repleto de alusões à decisão dos estudantes “novos” (classificados como líricos “bebés”) de porem fim às Festas Nicolinas.


BANDO ESCOLÁSTICO
Levado a efeito pelos aposentados e seus conterrâneos que estudam no Porto
Recitado em 1 de Dezembro de 1912, pelo estudante
ALBERTO VIRGÍNIO BAPTISTA

A treva esfarrapou as asas do Levante!..
O Averno escancarou-se e o gigantesco Dante
Calando de repente os gritos de Ugolino,
Ficou-se a escutar de ouvido atento e fino
Todo o ruído enorme e monstro e colossal
Que vinha dum rincão do velho Portugal
E ecoava pelo espaço, livre de paragens.
Nesta terrível ária: — Ouvi, ouvi, selvagens
Escorraçai Minerva e o grande Nicolau!...
A velha tradição escangalhai-a a pau
E mandai ao diabo os bombos e os tambores,
Que a Nova Geração não grama esses horrores!..
Aparecei como nós de babeiro e calção
E vamos a jogar o beto e o pião
Para o largo do Liceu ou Campo do Proposto,
Que é esta a novidade a resumir bom gosto!..
Amorfalhai o que há-de sórdido e grotesco!..
Esbarrondai o riso alvar, carnavalesco,
Tudo que cheire a verve, a chiste, a pagodeira,
E vamos a correr até à Feijoeira
Uma estrela gigante, de papel de seda?
Selvagens, escutai: a vida, quando leda,
É preciso rasgá-la da cabeça aos pés...
É viver como nós, os líricos “bebés,”
A chuchar no polegar e a lamber o queixo
Ou a esticar a perna ao eixo- rebandeixo!...
Nada de tradições… A tradição é um erro...
A quem fizemos já o sumptuoso enterro...
Saltem inovações pinchantes, hodiernas,
Com a pinha no chão e pelo espaço as pernas!...
E seremos destarte a Ala dos Ingentes,
E até aos Cães de Pedra a perfeição das gentes!..

O silêncio voltara...E o Dante, boquiaberto,
Julgando-se talvez dum sonho mau desperto,
Foi procurar Virgílio, o Mestre sublime.
E contou-lhe o que ouviu como se fora um crime...
Mas o Mestre, sereno, respondeu-lhe, então,
Muito pausadamente, com palavras mansas,
Pousando-lhe no ombro a descarnada mão:
— Deixa guinchar, ó Dante, as pálidas crianças!...

*

Ó Vimaraens formosa, ó nossa Terra Amada:
Há em ti o sorriso algente da Alvorada
A espargir o Amor e a fecundar mil beijos!...
Nós trazemos na Alma os íntimos desejos
De te imergir um dia em rosas de Luar
E em nossas liras de oiro um Poema te cantar!...
Muito mudada estás!...Ai! como estás mudada!...
Não sei porquê, agora, assim, modernizada.
Esse teu porte austero armou-se em bizarria
E do teu seio rompe um hino de alegria!...
O teu Jardim deixou de ser encurralado!...
Rasgaste um passeio de cimento armado
E vastos escadórios, cheios de beleza,
Que nos vão a indicar a loja da Havaneza!...
Mais acima, lá tens, embora em desarranjo,
Por causa das ruínas do convento do Anjo
Mais um largo a largar almudes de aparato
Depois, ó Vimaraens, já tens um Internato
Onde haverá um dia a bala equitação
E até, num alguidar, lições de natação
A Manchester tu dás na Indústria pelo ombro!...
Até a electra móis e gelas, que é um assombro!...
Já de auto omnibus vais à Braga hospitaleira
Quase na rapidez duma semana inteira!...
Fizeram tuas feiras uma tal mixórdia:
Que pediu a do Pão a santa Misericórdia
E a do Gado a largueza ao largo “brasileiro”
Foi o bastante, pois para que bem ligeiro
O S. Francisco armasse as armas tão ridículas
E pedisse para si “Alfaias “ só “Agrícolas”!...
E a Cadeia, a Cadeia?!... Aquilo é um monumento
Que da Sociedade do imortal Sarmento
Ao lado seu não vale a ponta dum cigarro!...
 a nossa opinião, ao vermos essa escarro,
Onde se geram vícios, crimes, podridões,
Era modificá-lo em jaula, para leões…
Política, se a tens, a paz seja contigo
E o arcanjo S. Miguel te livre de perigo...
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Mas… mudando de assunto, alfim, para variar:
Tu não sabes talvez o que nos faz chorar.
Ó nobre Vimaraens de tradições velhinhas?!...
Pois bem, é aquele achado ali nas Capuchinhas,
Que pelo tic e som e essenciais maneiras
Tanta falta nos faz às magras algibeiras!...

*

Minerva, então que é isso! Vamos... porque choras?!...
Quando nos vês porque é, ó Deusa, que assim coras
E o rosto teu escondes, cheia de vergonha?!...
Ora diz-nos cá; porque é que andas tristonha,
Tu que eras expansiva, alegre, tão vivaz?!...
Pois bem: sabemos tudo e onde esse mal voraz
Com raiva germinou para te fazer sofrer!..
Se Júpiter, teu pai, o chega a aperceber
Que desgosto terá, ó Deusa da Ciência.
Embora logo em ti descubra a inocência!...
Levarem-te os “maraus” ao “Púcaro”, sem dó,
E entre as pipas, depois, deixarem te ali só
No mais cruel desdém e abominável trato!...
Ah! se não fora, não, o bom “Domingos Rato”
A estas horas, quem sabe, ó Deusa, onde estarias?!...
Talvez nos vagalhões terríveis das orgias,
Perdida para sempre em densa escuridade!!
— Bebés sem coração! Horror! Perversidade!...

*

Senhoras, perdoai! Nós somos tão velhinhos,
Que ao chorarmos a nossa loira Mocidade
Fazemos recordar os lívidos ceguinhos
A chorarem a Luz com preces de Saudade!
Já não podemos, não, dizer-vos como outrora,
Cingidos de Luar por essa Noite em fora,
Temendo ao buliçar dos meigos arvoredos,
Juras feitas de Amor e divinais Segredos!
Ai! somos tão velhinhos! Que saudade imensa!
Até já nos fugiu aquela santa Crença
Que esplende a Felicidade em rútilos clarões
E que tínhamos dentro em nossos Corações
De eternamente amarmos com o mesmo ardor!
E tudo nos fugiu e só nos resta a Dor:
Os nossos corações tremem com frio, ouvi...
Afundam-se a chorar em tremedais de brejos!
Senhoras, compaixão, levai-os até aí
E aquecei-os, por Deus, no fogo desses Beijos!...
Ai! somos tão velhinhos! somos tão velhinhos,
Que precisamos tanto, tanto de carinhos
E pedimos humildes e leais e francos:
— Senhoras, afagai nossos cabelos brancos!...

*

Velhotes, preparar!... Eu quero os “sons” imersos
Num bombástico mar, terrível, colossal!..
Que até horrorizados saltem de seus “berços”.
Aos gritos pelos pais, com mil espalhafatos,
Julgando ser o fim do velho Portugal,
Os líricos “bebés”, os místicos “novatos”!...
Rufai esses tambores! rasgai esses zabumbas!
Fazei estremecer os mortos e as tumbas,
E, ouvindo esses estrondos infernais, satânicos,
Que tremam a “Turquia” e os “Estados Balcânicos”!...
Dezembro de 1912.
Delfim de Vimaranes

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