As celebrações afonsinas de 1911 (14)



A comemoração do centenário do nascimento do fundador da monarquia portuguesa, em 1911, despertou sentimentos contraditórios entre os republicanos vimaranenses, com a República a instalar-se em Portugal. O texto que a seguir se transcreve é ilustrativo desse estado de espírito.
 
A propósito do centenário de Afonso Henriques

A comemoração do oitavo centenário do nascimento de Afonso Henriques, que a cidade de Guimarães apensou este ano às grandiosas festas Gualterianas, se por um lado alegra e encoraja o meu coração de patriota, não é menos certo que por outro lado me traz amargura, desalento e desesperação.

Às vezes um mal apenas se subentende. Não há possibilidade de o descortinarmos franco e aberto como um inimigo leal. E o centenário do nascimento de Afonso Henriques, posto que rodeado de atavios sem número, ofuscantes como a luz deste fecundo sol de Agosto, representa para mim um mal, um mal encoberto, um mal que só a minha razão, após longa análise de diversas circunstâncias, pôde descobrir. E não será um mal, oh, não será, o sermos hipócritas?

Que significa, na realidade, a comemoração do centenário de Afonso Henriques?

Patriotismo?

“A Velha Guarda”, cuja direcção está confiada a um dos homens mais inteligência da nossa terra, e não só inteligente mas livre de preconceitos, dignou-se conceder-me permissão para dizer o que quisesse sobre o assunto que venho tratando.

E porque assim é, cumpre que eu diga em poucas palavras toda a verdade, embora ela vá ferir quem quer que seja que se julgue no direito de exigir que só se escrevam, neste momento, longas apreciações lisonjeiras, mas falhas de sinceridade.

O centenário de Afonso Henriques, que agora se comemora, não significa por forma alguma que na maioria dos habitantes da cidade de Guimarães haja uma réstia, sequer, de patriotismo.

Pois que! Onde, em que terra do país, por mais modesta e afastada que seja, se viu já o que aqui se tem visto, no actual momento histórico?

Eu exijo o testemunho valioso do leitor independente, isto é, no gozo de plena liberdade de consciência; eu reclamo a opinião sincera, desinteressada, daquelas pessoas que, desligadas por completo de coteries políticas, possam emitir uma opinião terminante, decisiva.

E, pois, dir-me-ão: tudo o que se tem passado na cidade de Guimarães, tudo o que se ouve aí, a todos os cantos, autorizam-nos a afirmarmos que a comemoração do centenário de Afonso Henriques obedece a um puro sentimento de patriotismo?

Ninguém nos desmentirá; todos confessarão que nos assiste o direito de negarmos a menor parcela de patriotismo a essa comemoração, que, contudo, mais brilho vem dar, se é possível, às imponentíssimas festas da cidade.

É que, na verdade, o patriotismo, hoje, tem de ser encarado por modo bem diverso daquele por que o encara a maioria da população vimaranense. Daí o não ser possível acreditarmos na sinceridade do patriotismo que agora tão solenemente se invoca.

A cegueira dessa maioria, por fetiches que tiveram já a sua época de preponderância e falsa glória, subsiste ainda e é ela quem lhe conduz os passos e dita todas as acções.

E este estado mórbido, que nos entristece e envergonho, desvirtua toda a obra que se pretenda classificar de patriótica, infelizmente agora que, mais que nunca, seria preciso que todos tivéssemos muito amor à nossa querida pátria.

Que a evocação, ao menos, dos feitos assombrosos de Afonso Henriques, por virtude dos quais ainda somos uma nação livre e independente, seja poderoso incentivo para uma nova orientação em ordem a modificar radicalmente todos os sentimentos anti-patrióticos por diferentes modos expressos nos últimos tempos.

Que a sua nobilíssima conduzia, de guerreiro mediévico quase sem igual, nos incite a lutarmos corajosamente porque se conserve intacta a terra estremecida que é a nossa pátria.

Dêmos todos o amplexo fraternal indicativo de mútuo e intenso afecto, de recíproca aspiração pelo supremo bem comum.

X.


A Velha Guarda, 5 de Agosto de 1911


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