Largo da Misericórdia (6)

O Largo da Misericórdia no início do século XX. Ao fundo, a casa de torre que pertenceu a Tadeu Luís.
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A casa de torre que domina o topo norte do Largo da Misericórdia pertenceu a Tadeu Luís António Lopes da Fonseca Carvalho e Camões, Senhor de Abadim e Negrelos, mentor da Academia Vimaranense. Ficaram célebres as festas que ali se ofereceram. Uma delas, em que se celebravam os esponsais do Príncipe do Brasil, futuro D. José I, com a princesa das Astúrias, realizada em Fevereiro de 1728, teve direito a ficar registada num folheto com o título “Guimarães Festiva”. A festa em Guimarães durou quatro dias e o último, dia 7, correu por conta de Tadeu Luís. Vale a pena ler a notícia, tal como a deu a pena do Padre Caldas:

Toda a fachada do seu palácio - casa hoje dos Mota-Pregos, no campo da Misericórdia - e a torre, não só nas janelas, mas ainda em todo o pano da parede até ao nível da rua, se guarneceu de tochas de cera branca, e tão juntas umas das outras, que faziam uma maravilhosa e agradável perspectiva.
Todo o interior do palácio, pátio, escadas e galerias, se achava da mesma forma iluminado, excedendo só as tochas o número de mil.
O frontispício da igreja da Misericórdia transformou-se noutro de luzes de primoroso artefacto; e todas as mais casas que formam a face daquela praça, se cobriram de veludos e grisetas sem número.
Levantaram-se nos quatro cantos da praça, quatro pirâmides formadas sobre arcos, revestido tudo de encarnado e prata e adornado de vários remates e decorações. Por cada arco se entrava num bosque frondosos ramos, e de todos os quatro bosques rebentavam outras tantas fontes de excelente vinho.
No centro da praça, se erigiu um padrão sobre quatro colunas, cujos capitéis serviam de base a outras tantas pirâmides, e nestas se davam a ler as augustas ascendências dos quatro príncipes contraentes desta nova e feliz aliança das duas coroas.
Num padrão, que se levantava ainda sobre as quatro referidas pirâmides, via-se debuxada a árvore genealógica do infante D. Duarte II, duque de Guimarães, vendo-se por ela, que de um duque de Guimarães e de suas irmãs, a imperatriz D. Isabel e a duquesa de Sabóia, rainha de Chipre, D. Brites, descendiam quase todas as potências então dominantes na Europa. Debaixo desta máquina, no vão de quatro colunas, estava um boi vivo, como símbolo da paz e da abundância.
Disposto assim tudo, começou a festa pelo pomposo das galas, e como é impossível descrever a riqueza e o bom gosto de todas, em uma povoação, em que há tanta nobreza e tantos morgados ricos, faremos uma breve memória do que vestiu neste dia o autor da festa.
Vestia este uma casaca escarlate, primorosamente bordada a ouro e prata, e relevava a bordadura com alcachofras de canotilhos; e de uma véstia dum estofo coalhado de ouro brilhante, que o moderno vocabulário clama glacé. A venera da Ordem de Cristo - em que era cavaleiro professo - era de ouro guarnecida de preciosos diamantes, e da mesma matéria e guarnição a fivela, botão e presilha do chapéu, copo e guarda do espadim, e fivelas dos sapatos.
Seguiu-se um sumptuoso banquete, para o qual convidou cinquenta e seis pessoas da principal nobreza da vila, várias dignidades e cónegos, tesoureiro-mor da sé de Braga, prelados das religiões e ministros da justiça. Três vezes se cobriu a mesa; e cada uma com trinta e seis grandes pratos, todos diferentes e abundantemente providos dos manjares mais deliciosos e esquisitos. Nas duas primeiras foram os convidados servidos em prata; na terceira em porcelana do Japão e da China, durando este gostoso divertimento até o pôr do sol.
Chegada a noite passaram os hóspedes a um salão, onde na parede principal, debaixo de um decel de brocado de ouro, se viam os retratos dos quatro príncipes casados, - D. Maria Bárbara, D. Fernando, D. José e D. Maria de Bourbon.
Todas as portadas e panos dos bofetes eram de tela, e as paredes estavam guarnecidas com dez grandes e excelentes placas de prata, e outras tantas serpentinas do mesmo metal, curiosamente lavradas. Passavam de 150 as luzes, que iluminavam esta sala.
Nela se achavam juntos os famosos atletas da Academia vimaranense: e na presença de mais de trezentas pessoas, tanto eclesiásticas como seculares, se recitaram quatro orações panegíricas, e muitas poesias elegantes em várias línguas. Deu princípio a este acto académico, por uma elegante oração, o secretário da mesma academia, Amaro José de Passos, a quem o senhor de Abadim agradeceu este trabalho com um anel de diamantes e um livro histórico.
Fez o segundo panegírico o dr. Francisco Rebelo Leitão, corregedor da vila, a quem o senhor de Abadim manifestou o seu agradecimento, com um relógio e o EPITOME DA HISTÓRIA DE PORTUGAL.
Orou em terceiro lugar em língua latina correcta e elegantemente o dr. Manuel Lopes de Araújo, a quem o senhor de Abadim agradeceu com outro igual relógio e as primeiras CRÓNICAS deste reino. Recitou o quarto panegírico o mesmo senhor de Abadim, na língua castelhana, que apesar de estrangeira, nada ficou prejudicada na sua natural elegância; e foram seu prémio os frenéticos e merecidos aplausos dos sábios presentes.
Para que a dilatada lição de quatro discursos não tornasse fastidiosa aos ouvintes, se alternaram com uma serenata e uma loa, feita expressamente para aplausos dos dois régios consórcios.
Os interlocutores eram os melhores músicos conhecidos; e faziam as figuras da Fama, do Obséquio, da vila de Guimarães e dos dois coutos de Abadim e Negrelos.
O discreto do verso, o sonoro das vozes, e o ornato das figuras, conseguiram infinitos aplausos a este divertimento.
Acabado o acto académico, passou-se a outro teatro não menos divertido. Era este a mesma praça, iluminada por milhares de luzes, e povoada por seis a sete mil pessoas, que concorreram não só da vila, mas das vizinhas povoações. Iluminaram-se todas as cinco máquinas que adornavam a praça, e que pareciam outras tantas constelações: e deu-se ordem para que principiassem a correr as quatro fontes do precioso licor, entregando-se logo ao povo para ser repartido o boi que até então servia de símbolo da paz.
E como isto ainda não parecesse bastante, mandaram lançar das janelas do palácio mais de dois mil pães e vários cestos de frutas e doces, sem que a sofreguidão com que muitos ao mesmo tempo queriam apanhar, desse lugar à menor desordem ou desatenção, antes se atroavam os ares com repetidos vivas em cordial alvoroço.
Correndo-se novos bastidores, se viram logo no mesmo teatro correr fontes, encher e vazar cântaros, esgrimir montantes, circular rodas, voar girândolas, voltear serpentes, tudo de fogo de variadíssimo artifício; ao mesmo tempo que os clarins, ajustados com os atabales e hoboazes, declaravam guerra aos produtos da melancolia e aos efeitos da tristeza.
Três horas se passaram neste aprazível divertimento, que foi a manifestação mais ruidosa e brilhante, que os nossos antepassados deram da sua dedicação pelos monarcas portugueses.
Padre António José Ferreira Caldas, Guimarães - Apontamentos para a sua História, 2.ª Edição, Guimarães, CMG/SMS, 1996, parte I, pp. 225/228

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