Guimarães, 24 de Junho de 1128: daqui nasceu Portugal. Qual é a dúvida?

Afonso Henriques (gravura da Col. da Sociedade Martins Sarmento)
... E, de repente, começou a debater-se a história de Portugal e a fundação da nacionalidade com uma paixão que estamos mais habituados a ver quando se discutem fenómenos desportivos. Nesta discussão, não têm faltado claques nem treinadores de bancada, que se revelam profundos conhecedores da matéria e opinadores eloquentes. Confesso que me tenho divertido alguma coisa com o debate em curso...

Toda esta controvérsia é tão velha, quanto inútil.

Aquando da afirmação da independência nacional em 1385, passou a consolidar-se a tese da Batalha de Ourique como o momento mais importante da fundação da nacionalidade, para o que muito contribuiu o facto de, na viragem do século XIV para o XV, ter sido associado a uma intervenção divina. S. Mamede permaneceria quase esquecida. Receberia a atenção, já no século XVII, de Frei António Brandão, que, no entanto, lhe dará menos relevância do que à Batalha (ou Recontro, ou Torneio, ou Bafordo) de Valdevez, travada em data incerta, algures entre Fevereiro e Março de 1141. No entanto, também perfilha a ideia de Ourique, o momento em que Afonso Henriques terá sido aclamado, pela primeira vez, rei de Portugal, como o marco fundador da nacionalidade. Mais tarde, já no século XIX, Alexandre Herculano mergulhou nos monumentos da documentação medieval portuguesa e deu solidez à tese que dá a Batalha de S. Mamede como o início da afirmação da independência, e que, desde então, tem sido quase consensual na nossa historiografia.

A construção de Portugal, com Afonso Henriques, teve, inegavelmente, três momentos cruciais: 1128 (com a Batalha de São Mamede que, para citar Herculano, equivaleu “a uma declaração formal de independência”), 1139 (com a Batalha de Ourique e subsequente proclamação de Afonso Henriques como rei de Portugal), 1179 (com a Bula Manifestis Probatum, pela qual o papa Alexandre III reconheceu formalmente a independência de Portugal). Todas estas datas são importantes, mas não me parece que possam subsistir dúvidas sobre qual delas ocorreu primeiro…

O medievalista português que mais profundamente estudou esta época da nossa história e a figura de Afonso Henriques, José Mattoso, defende que a história de Portugal começa em S. Mamede.

Posição bem diferente assumiu um outro destacado historiador contemporâneo que se debruçou sobre aquele período, A. H. de Oliveira Marques. Há uma dúzia de anos, no II Congresso Histórico de Guimarães, sobre “D. Afonso Henriques e a sua época”, este autor advogou uma tese singular, que na altura gerou alguma controvérsia: a de que Portugal não teria nascido com Afonso Henriques, mas com Afonso III, o rei que completou a conquista do Sul, feito que “ajudou a definir Portugal e a dar-lhe características próprias”. Segundo Oliveira Marques, o Estado português nasceu “do encontro de duas realidades, da tentativa de fusão o Norte portucalês com o sul moçárabe-muçulmano”. O rei fundador seria, assim, não Afonso I, mas Afonso III: “com ele nascia de facto Portugal. Afonso Henriques, monarca portugalês, cedia lugar a Afonso III, rei português”.

Embora esta tese faça algum sentido (Portugal, tal como o conhecemos, como entidade homogénea, só existe desde que passou a integrar a totalidade do território que hoje o conforma, do Minho ao Algarve), não me suscita qualquer dúvida a adesão à ideia comummente aceite, pela tradição e pelos historiadores, de que este país começou a dar os primeiros passos a partir de S. Mamede. O 24 de Junho de 1128 foi, para usar o título feliz do painel de Acácio Lino, “A primeira tarde portuguesa” (expressão depois adoptada por José Mattoso, num notável artigo que publicou na Revista de Guimarães de 1978, cuja leitura recomendo).

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