Joanina, a feira?

D. João I e D. Filipa de Lencastre. Esculturas atribuídas a João Garcia
(pórtico da Igreja da Senhora da Oliveira, Guimarães)

A propósito da Feira Joanina, cuja última edição teve lugar no dia 29 de Setembro, começarei por confessar-me adepto das feiras de época e das recriações históricas enquanto manifestações que contribuem para animar sítios históricos. Estas iniciativas, como o demonstra o assinalável sucesso deste ano, apesar da manifesta falta de colaboração da meteorologia, podem assumir-se como importantes factores da valorização e do conhecimento da história e do património locais. A aposta está claramente ganha, importa agora não descurar os pormenores que podem fazer toda a diferença.
 
Dito isto, direi que, até porque estas iniciativas têm também uma responsabilidade pedagógica, se deveria apostar um pouco mais na afinação do rigor histórico, nomeadamente em relação às mercancias que são levadas à feira.

Uma das principais virtualidades das recriações históricas resulta de podermos mergulhar numa espécie de viagem no tempo que nos leva ao quotidiano de outrora. Pode ser um importante auxiliar, a um tempo lúdico, a outro didáctico, para a compreensão do modo de vida no passado mais ou menos longínquo. Nas aulas os alunos aprendem, por exemplo, como era diferente a vida dos nossos antepassados, com recurso a exemplos facilmente compreensíveis, como a alimentação, que há meia dúzia de séculos era bem diferente da actual. O período joanino é, aliás, ideal para um exercício de procura de diferenças, por se situar num mundo ainda fechado, mas que ia começar a abrir-se a outros continentes.

Para, um professor que, como nós, tivesse recomendado aos seus alunos uma ida à Feira Joanina, no pressuposto de que poderiam comparar a realidade actual com a da passagem do século XIV para o XV, estaria a induzi-los em erro.

Na feira, o que mais havia era pão de milho. Mas também papas doces de milho ou até belas espigas deste cereal. Também não faltavam abóboras, batatas, feijão ou pimentos. Algures, vendia-se doce de tomate verde ou de kiwi. Noutro sítio, biscoitos de café, que podiam ser acompanhados por licor de café e amora. Não faltava o chocolate, sob diferentes formas e aparências: bolo de chocolate, broas de chocolate, chocolate artesanal fondue, chocolates personalizados. E, por todo o lado, espreitava a tentação dos manjares da doçaria conventual.

Nem todos saberão, mas quem organiza e acompanha este género de eventos deveria saber que

- O período joanino corresponde ao reinado de D. João I, o da Boa Memória, que durou entre 6 de Abril de 1385 e o dia em que se finou, a 14 de Agosto de 1433.

- O milho, a batata, o feijão, os pimentos, a abóbora ou o tomate são alimentos que não existiam na Europa no tempo de D. João I. Só cá chegaram muito mais tarde, bem depois da descoberta da América de onde são, todos eles, originários.

- O chocolate também é originário da América dos aztecas. Na sua forma sólida, em tabletes ou bombons, é uma invenção europeia do segundo quartel do século XIX.

- O café veio da Etiópia, mas não era conhecido no Portugal joanino. Começou a ser consumido na Europa no início do século XVII.

- O kiwi tem origem no Extremo Oriente e só há algumas décadas é que foi introduzido nos hábitos dos ocidentais.

- As alheiras foram uma invenção quinhentista dos judeus, como artimanha para escaparem à Inquisição, após a sua expulsão de Espanha pelos reis católicos, em 1492.

- Parece um pouco forçado falar-se em doçaria conventual no tempo de D. João I. Nesse tempo, as especialidades doceiras dos conventos seriam bem diferentes das que hoje conhecemos, nas quais prevalecem as gemas, a amêndoa e o açúcar. Por falta de conventos (em Guimarães não havia então nenhum convento feminino) e por falta de açúcar, ao tempo tão escasso que chegava a ser cinquenta vezes mais caro do que o mel.

Para sedimentar estas reflexões, consultei a informação sobre a feira disponibilizada na página da Zona de Turismo de Guimarães, onde consta o seguinte: 

“Foi, por exemplo, no seu reinado que se começou a construir a Casa da Câmara, a qual ainda hoje serve de união às duas praças onde se recria a feira joanina - Praça da Oliveira e Praça de Santiago.” 

Das duas, uma: ou D. João teve um reinado muito mais longo do que o que se sabia até aqui, ou os nossos historiadores andam enganados, uma vez que a antiga Casa da Câmara foi erguida, desde os alicerces, entre 1627 e 1628.

Se é verdade que numa feira como esta será compreensível um ou outro anacronismo, parece-me que haverá necessidade de um maior investimento no rigor histórico, para que a sua vertente pedagógica possa ser um pouco mais confiável. A este nível, a colaboração com as nossas escolas poderá resultar numa boa surpresa. E, como os conselhos se dão de graça, aqui vai um: porque não começar por ler um livro magnífico, mas quase esquecido, do medievalista Oliveira Marques, A Sociedade Medieval Portuguesa?

Quanto à feira queremos mais. Uma vez por ano sabe a pouco. Por mim, até pode ser igual a esta.

Só não lhe chamem joanina.

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