Os manuscritos de João Lopes de Faria

Um dos fundos documentais mais preciosos de quantos se guardam na imensa Biblioteca das Sociedade Martins Sarmento foi coligido, ao longo de muitas décadas, por alguém que, pelo retrato que dele traçou Alberto Vieira Braga, não aparentava ser mais do que “ um homem vulgar, encolhido num desprendimento de vestuário” e que, à primeira vista, aparecia sombrio, dando ares de não mais do que “um tipo curioso, que vem de longe, do viver antigo do velho burgo, e saber só das coisas que se passaram no correr da sua vida, à sua volta e à volta do mundo miudeiro da antiga Guimarães”. O seu nome: João Lopes de Faria.

João nasceu na Oliveira, em Setembro de 1860. Era filho de António Lopes de Faria, humilde sacristão da Colegiada, e de Constância Rosa. Teve uma infância pobre e foi coreiro na Colegiada. Aprendeu as primeiras letras na escola particular de um sargento reformado, o Almeida, e frequentou “estudos superiores” na escola do Venâncio, onde se ensinava bom latim e bom português. A ânsia de aprender marcava profundamente a sua personalidade, a par de um feitio acanhado e excessivamente modesto. A vida, ganhou-a como músico, exercendo o ofício de organista da Colegiada. Dedicado às coisas da história de Guimarães, ao longo dos anos colaborou em revistas e nos jornais locais, onde foi dando notícia de memórias que desenterrava do esquecimento em arquivos e bibliotecas. Mas o essencial da sua obra ficaria inédita, até aos nossos dias.

Introvertido e solitário (passou parte da sua vida como pensionista da Ordem Terceira de S. Francisco), tornava-se particularmente loquaz sempre que lhe pediam alguma informação e ele descobria que os conhecimentos que acumulara da leitura de velhos papéis poderiam ser úteis a alguém. Dizia-se que nada ignorava dos anais vimaranenses. O pintor Abel Cardoso chamava-o de Dicionário de Guimarães.

No obituário que o Comércio de Guimarães publicou aquando do seu falecimento, em 1944, João Lopes de Faria foi descrito como um trabalhador que “perscrutou autógrafos amarelecidos que jaziam nos arquivos; visitou as bibliotecas públicas; concentrou-se na decifração de antigos documentos e manuscritos, e à sua curiosidade de saber e paciência beneditina se devem elementos preciosos para a história de Guimarães, que, sem o seu esforço, ficariam sepultos no pó das estantes”.

Doze anos antes, numa homenagem que os amigos lhe fizeram, depois de ter recebido as insígnias da Ordem de S. Tiago, Eduardo de Almeida falava da paixão de João Lopes de Faria que, “por sua mãos de Imaginário, idealista, místico romântico, e paciente, curioso, investigador, ressuscitou a morte, soergueu o passado musgoso, o passado sombra, o passado – um maço velho de papéis esfarinhosos, em que ruins garatujas esvaidamente amareleciam, na abandonada indiferença dos arquivos”.

A obra de João Lopes de Faria tem a dimensão de um verdadeiro monumento. É constituída por muitos milhares de folhas de papel almaço, cobertas pela sua letra miudinha e cuidada, em cujo desenho é possível observar os efeitos do passar dos anos, à medida que envelhecia. Ali copiou um número incontável de documentos que resgatou de velhos manuscritos. Conhecedor da obra do mais prolífico dos paleógrafos vimaranenses, Alberto Vieira Braga, pressagiou, há mais de setenta anos, que, “quando uma vereação lhe editar as 20 mil efemérides, que tem arquivadas, e todas exclusivamente respeitantes à história de Guimarães, aparecerá então João Lopes de Faria como autor de uma obra monumental”.

No seu testamento, deixou registada a sua vontade em relação à colecção dos documentos que coligira ao longo da sua vida: “declaro que à minha morte devem ser entregues à guarda da Sociedade Martins Sarmento, honra não só de Guimarães como de todo o Portugal, de que sou ínfimo sócio, todos os meus papéis e livros manuscritos (para cima de 20 volumes) em que, gastei grande parte das horas de ócio, a cooperar para a história da minha Pátria vimaranense, e também os livros impressos, porque alguns deles têm anotações minhas manuscritas. Todos estes volumes e papéis respeitantes aos meus modestos trabalhos de investigação e demais livros da minha pobre estante devem ser, pelas Direcções da prestimosa Sociedade Martins Sarmento, facultados a todos os estudiosos, mas somente dentro da sua sede”.

O legado de João Lopes de Faria à Sociedade Martins Sarmento é composto por dezenas de volumes encadernados a couro preto, onde se destacam, para além das Efemérides (quatro volumes repartidos por cada um dos trimestres do ano, onde estão registados muitos milhares de acontecimentos relacionados com a História de Guimarães, distribuídos ao longo dos 366 dias que pode ter um ano), as Velharias da Colegiada Vimaranense (dez volumes, mais dois de índices), as Vereações e Outros Documentos da Câmara, o Catálogo dos Livros e Documentos da Câmara Municipal de Guimarães, as Provisões e Sentenças da Câmara Vimaranense, as Escrituras Públicas Vimaranenses, entre muitos outros.

Aos estudiosos que, nos tempos que correm, se confrontam pela primeira com a dimensão da obra manuscrita de João Lopes de Faria, é habitual escutarem-se exclamações de espanto. Já muitas vezes ouvi dizer que “este homem merece uma estátua”. Ainda não a teve, nem sei se a virá a ter. Mas quis a ironia do destino que, há pouco tempo, lhe fosse feita uma homenagem involuntária: o edifício que hoje acolhe o Arquivo Municipal Alfredo Pimenta, onde se guarda a maior parte dos documentos a cuja decifração dedicou a sua vida, ostenta na fachada uma placa onde se pode ler: Rua João Lopes de Faria.

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