O relógio parado

 


Começo a escrever a minha primeira crónica para o Jornal de Guimarães quando os ponteiros do relógio do Toural marcam dez horas e quarenta e sete minutos.

Costuma dizer-se que o património é uma das marcas distintivas de Guimarães, não só porque o tem, muito, valioso e diverso, mas também pelo modo como assume como um desígnio coletivo a sua defesa e o seu cuidado. Não obstante, ainda há por aí tesouros patrimoniais votados ao esquecimento e ao abandono. Um deles está escondido na basílica de S. Pedro do Toural.

A igreja do Toural foi dada por concluída na década de 1880, mas os olhos vazados das quatro faces da sua torre desirmanada só foram preenchidos muito mais tarde, quando a Câmara, depois de autorizada pela Irmandade de S. Pedro, por protocolo perpétuo, ali mandou instalar um relógio com quatro mostradores.

O mecanismo, uma notável obra de engenho e arte, foi encomendado no dia 8 de Julho de 1938 ao relojoeiro Manuel Francisco Cousinha, que concebeu e montou um relógio-carrilhão mecânico que acionava quinze sinos e estava dotado com um dispositivo de cilindros apto a executar qualquer composição musical. Este maquinismo foi então classificado pelos jornais de Lisboa e do Porto como “uma maravilha de mecânica, a melhor e mais completa de Portugal, depois dos carrilhões de Mafra”, tendo estado em exposição na Casa Africana, em Lisboa, no Palácio Ford, no Porto, e no estabelecimento de Bernardino Jordão, Filhos & C.ª, no Toural. Foi preparado para assinalar as horas com fragmentos do Hino de Guimarães, que os vimaranenses escutaram pela primeira vez nas Gualterianas de 1938.

O relógio municipal marcou o tempo de Guimarães até que, em 2002, alguém, sem aviso à proprietária nem ao zelador, decidiu que era tempo de o substituir por uma maquineta eletrónica, capaz de executar centos de músicas, mas que não demorou a tornar-se obsoleta. Parou em 2018.

Na altura, interessei-me pela história daquele relógio. Acabei por descobrir que a empresa fundada por Manuel Cousinha ainda existia. Tentei saber se o relógio teria conserto. Respondeu-me um neto do seu inventor, que me disse que estavam “habilitados a restaurar e reinstalar o vosso relógio-carrilhão mecânico e todos os acessórios existentes”, prontificando-se a vir de imediato a Guimarães.

Disse-lhes que iria comunicar a resposta à Câmara, “na esperança de desenvolvimentos futuros no sentido da devolução à cidade Guimarães daquele património singular, incompreensivelmente desativado”. Assim fiz, no dia 1 de Outubro de 2018.

Passado tanto tempo como o que o ponteiro maior gastaria para dar mais de vinte e duas mil voltas ao relógio, continuo sem resposta e sem saber se a minha iniciativa teve  desenvolvimentos.

Costuma-se dizer que Guimarães também se distingue pelo modo como acolhe os contributos dos seus cidadãos, mas isso é algo que parece ter parado num tempo lá atrás, como o relógio que consulto no momento em que termino de escrever, onde ainda são dez horas e quarenta e sete minutos.

[Crónica originalmente publicada no n.º 1 do Jornal de Guimarães em Revista, Abril de 2021.]

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