Consumado, mas não explicado. (IV)


Afinal, só há um parecer do ICOMOS-Portugal sobre o projecto do parque de estacionamento da Caldeiroa-Camões. Está, entre emails e outros documentos, no dossier que a Câmara Municipal de Guimarães disponibilizou hoje, depois de dizer que não o faria sem que antes houvesse uma reunião entre o Presidente da Câmara Municipal de Guimarães e a presidente do ICOMOS-Portugal. Que se saiba, tal reunião não terá acontecido, mas o parecer aí está.
O documento tem a data de 28 de Agosto, pelo que se conclui, com tristeza e justificada indignação, que o seu conhecimento foi sonegado aos cidadãos de Guimarães antes das últimas eleições autárquicas. Fica tal facto registado, para que seja lembrado quando alguém disser que os vimaranenses sufragaram o projecto do parque em eleições.
O parecer afigura-se bem fundamentado e rigoroso. Não concordando com o seu teor, como se percebe pelo que tem sido dito, a Câmara absteve-se, incompreensivelmente, de se pronunciar em contraditório, optando por explorar supostas dissensões entre membros da direcção do ICOMOS-Portugal. Poderia e deveria tê-lo feito, mas nem se deu ao trabalho de o fazer, tal como o diz, ipsis verbis, a responsável pelo Gabinete de Couros, no parecer lapidar  (em todos os sentidos da palavra) que dirigiu ao presidente da Câmara, onde escreve que o documento “contém tantas contradições e erros que sobre isso nem me dou ao trabalho de contraditar”. Se o parecer do ICOMOS era assim tão mau, devia ser fácil de desmontar. Ou, se calhar, até dava um bocadinho de trabalho…
A autora do parecer, com base na sua observação in loco, verificou rapidamente o que salta aos olhos de quem queira ver, nomeadamente:
  • que, com a construção do parque, os tanques de curtimenta que se conhecem no local (faltando saber se haverá outros que ainda se desconhecem) “ficarão irremediavelmente descontextualizados ao serem integrados numa zona completamente alterada”;
  • que “serão demolidas diversas construções industriais em pedra, assim como será profundamente afectada a mancha verde preservada nos logradouros das casas e antigas industrias, onde se incluem árvores de grande porte algumas delas centenárias”, situadas numa “importante, e praticamente única zona verde localizada na zona Sul do Centro Histórico”;
  • que o projecto é incompatível com “a existência de espécies com raízes mais profundas, dado propor-se para o subsolo uma estrutura de betão”;
  • que “as importantes limitações nas áreas previstas para entrada e saída de veículos, quer pela dimensão das vias, como pelo enquadramento das habitações e estabelecimentos comerciais, sendo certo que a vivência destes locais será afectada de forma irreversível, algo especialmente relevante quando se trata não só de uma Zona de Protecção de um Bem classificado, como do interior perímetro que se propõe agora integrar na classificação”;
  • e que “em Guimarães não existem efectivamente problemas graves de estacionamento, encontrando-se uma das áreas onde é possível estacionar a poucos metros do projecto agora proposto, zona esta que raramente atinge a lotação máxima”.

Na sua conclusão, o parecer vai de encontro ao que se tem proposto em Guimarães quanto ao valor patrimonial do arrabalde de Couros, defendendo que “a ampliação da classificação de Guimarães para abranger o conjunto de Couros é desejável e faz todo o sentido” e que “é inteiramente coerente promover uma ampliação da área inscrita na Lista do património Mundial de modo a incorporar Couros”.
Nota também que o essencial de Couros ainda persiste, "apesar de algumas zonas deste complexo terem sido afectadas ou comprometidas por demolições ou intervenções descaracterizadoras”, de que dá como exemplos a recente construção do supermercado do Pingo Doce ou o “projecto de parqueamento automóvel de grande dimensão”, que implicará “fortes alterações no interior de todo um quarteirão situado em plena Zona Especial de Protecção do Centro Histórico-Património Mundial”, ao nível do subsolo, do edificado e da mancha verde existente, alertando que a concretização do projecto “poderá provocar a descontextualização, senão mesmo a destruição, de elementos com valor cultural e arqueológico”.
Por outro lado, o parecer nota que o projecto do parque de estacionamento contraria a lógica da “estratégia de reabilitação urbana para o mesmo território que se destaca pela concretização de projectos que demonstram uma especial preocupação em compatibilizar novos usos com o património existente, adequando escalas e tipo de intervenções, como por exemplo o caso da antiga fábrica Âncora reconvertida em Centro Ciência-Viva”.
Com base nestes argumentos, o ICOMOS-Portugal conclui, no único documento que o vincula, que a proposta do parque de estacionamento para a Caldeiroa, “como se apresenta” não é compatível com a proposta de extensão do espaço classificado como Património Mundial ao território de Couros, “nomeadamente por se incluir exactamente no perímetro da extensão que se está a propor classificar”.
Ora, não se percebe o que é que esta afirmação possa ter de controverso a ponto de provocar as reacções intempestivas a que assistimos. Ou será que alguém de boa fé e em uso pleno do seu juízo ousa admitir que o projecto de parque de estacionamento que foi gizado pelo Grupo Pitágoras para ocupar todo o miolo do quarteirão da Caldeiroa-Camões seja de tão extraordinária qualidade que aspire à intemporalidade instantânea e tenha mérito suficiente para que a UNESCO o classifique como Património Mundial? Não será excesso de atrevimento? E se descêssemos à terra?
Da leitura do parecer, não se entende a teimosia da Câmara Municipal de Guimarães, agora quebrada, em ocultá-lo aos cidadãos, especialmente em tempo tão sensível como os dias pré-eleitorais. Até porque bastaria fazer um compasso de espera para tomar uma decisão mais ponderada, em diálogo com todos os interessados, que podia passar por alterar o projecto (o que o parecer põe em causa é o projecto tal “como se apresenta”, abrindo espaço para a sua alteração, de modo a harmonizar-se com a candidatura a Património Mundial) ou, em alternativa, ponderar excluir a área onde o parque iria ser implantado do “perímetro da extensão que se está a propor classificar”.
No final, prevaleceu uma réstia de bom-senso e foi tornado público o parecer que tanta gente pedia. O que não se compreende é a razão que levou a Câmara a publicar, juntamente com o parecer do ICOMOS-Portugal, um outro parecer, produzido nos serviços municipais, que ninguém pediu e cuja leitura deveria fazer corar de vergonha quem o produziu e quem o recebeu.


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