Alexandre Herculano e as obras da Colegiada de 1830


Na década de 1830, enquanto liberais e absolutistas se confrontavam em Portugal, a Colegiada de Guimarães andou em obras de restauro que alteraram profundamente o aspecto da velha igreja. Onde antes havia granito rude do templo gótico, passou a haver um revestimento de madeira e estuque com douradouras e fingidos (pinturas que imitam pedra, nomeadamente mármore), dando-lhe um aspecto que correspondia ao gosto da época. Estas obras foram objecto da censura de Alexandre Herculano, num texto que já aqui publicado, que saiu no segundo tomo dos seus Opúsculos. Trata-se de uma versão encurtada e alterada de um texto de 1839 que saiu sem assinatura na revista O Panorama e que agora aqui reproduzimos. As imagens que acompanham este texto foram retiradas do n.º 128 do Boletim da Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais dedicado ao restauro de 1970/71, em que a igreja foi "limpa"  do revestimento que lhe colocaram no século XIX.

Mais um brado a favor dos monumentos.

Os SHEIKS Da tribo árabe de Bkà estavam um dia, pela volta da tarde, assentados junto das colunas de um templo, na extremidade oriental da Acropolis de Balbek.
Daqui, pondo a mão sobro os olhos, para os resguardarem do sol que os deslumbrava, os cabeças da tribo de Bkà alongavam a vista para a banda do poente.
E o sol, que descia rápido, mandava a sua luz suave, através daquelas arcarias gigantes e imensas; daquelas colunas monólitas, a menor das quais os braços de dez mil árabes não valeriam a erguer.
A hora era de meditarão e de melancolia; o os sheiks com aspecto carroçado olhavam para a ossada espantosa da antiga cidade, que é como uma injúria, que o passado atira às faces do presente, e ao mesmo tempo, como um protesto solene contra o eco vão chamado glória, e contra os dois dias que esta dura, a que chamamos eternidade.
E por entre aquelas moles de mármore e granito, viam-se passar, buscando as suas cabanas, sumidas por entre as ruínas, os árabes do deserto, semelhantes a gusanos, que refervem no cadáver meio-apodrecido de um elefante, esquecido pelos caçadores nas margens solitárias do Zambeze.
E, depois de largo silêncio, um dos sheiks abaixou os olhos, e com voz presa de furor íntimo, disse para os seus companheiros:
“Porque consentiremos nós, os filhos do profeta, que estes gigantes de pedra estejam continuamente assoberbando a choupana humilde do árabe, que passa livre na terra!”
“Se a nossa vida é um instante, edifiquemos guarida que lhe baste: nossos filhos que alevantem como lhes aprouver a tenda do seu repouso.”
“E esta é a verdadeira sabedoria.”
“Para que, pois, construíram as gerações passadas esses edifícios imensos, e semearam abismos pelo Anti-Líbano, arrancando dele pedreiras maciças, como se fossem os grãos da areia, com que ergue colinas movediças o sopro impetuoso do Simúm, que varre os desertos!”
“Que temos nós com os tempos que já lá vão, para que eles venham, com a linguagem muda dos monumentos, increpar o árabe de sua solta existência, e compará-la com o apuro de artes, e com a magnificência laboriosa dessas eras de grandeza e de poderio!”
“Certo é que então saíam da Assíria os conquistadores da Ásia: dela saíam as frotas que descobriam novos céus e novos mares; e os poetas cantavam a glória de façanhas quase incríveis.”
Mas hoje o árabe é, senão livre, ao menos licencioso; e posto que o reluzir do sabre de um Spahi de Ibrahim faça fugir amedrontados cem cavaleiros nossos; posto que o frangue do ocidente nos despreze como bárbaros, podemos saborear sem trabalho o pão de mendigos, saltear traiçoeiramente o viandante, e nenhum monumento dirá bem nem mal de nós aos vindouros; porque de nós nem restará o vestígio da última jazida.”
“E para que estarão aí por mais tempo esses templos, esses palácios, essas muralhas, cujos lanços de cem côvados três ou quatro pedras unidas bastaram a formar?”
“Que se reúnam os filhos de nossas solidões profundas, e desmoronem pouco a pouco estas memórias, que são uma espécie de maldição lançada contra nós pelas gerações extintas.”
O sheik calou-se: os outros abaixaram com lentidão grave as cabeças, como quem aprovava o dito.
Se qualquer de nós que isto escrevemos, ou de vós que o ledes, chegasse neste momento ao pé do velho templo de Balbek, e ouvisse as razões do árabe, o que diria no primeiro ímpeto de uma justíssima cólera?
Diria que o sheik era uma víbora, que esmagada debaixo dos pés de trinta séculos, queria dardejar contra eles a sua língua venenosa, pensando que os podia derrubar em terra.
E antes que a nefanda obra, que ele traçava, o os seus companheiros aprovavam, começasse a ser executada, assim falaria àqueles miseráveis loucos: “Vós-outros quereis derrubar a memória dos que foram, porque a sua majestade pesa mais sobre a vossa consciência, do que sobre esse chão, que parece gemer e curvar-se debaixo de tantas grandezas. Melhor fora que, convertendo-vos à virtude antiga, vos tornásseis uma nação forte e ilustrada, capaz de erguer monumentos, que emulassem estes.”
“Credes que a luz do sol Ocidental, batendo nas colunas avermelhadas dos velhos templos, vos reflecte nas faces envilecidas esse rubor, que as tinge? Enganais-vos: a vermelhidão, fá-la aparecer sobre a vossa tez crestada, não o reflexo da pedra lisa, mas uma voz íntima, que nunca podereis sufocar — a da consciência do vosso aviltamento e miséria. Esse rubor não o apagareis com o retumbar destes mármores, desabando sobre um solo desonrado pela vossa infâmia; mas sim fazendo calar com virtudes o grito dos remorsos.”
E, em verdade, qualquer de nós ousaria dizer isto ao árabe do deserto?
Não! — porque nós somos como eles: nós também nos persuadimos do que, varrendo todos os vestígios do antigo Portugal, podemos esconder aos estrangeiros a nossa decadência actual, e cremos que, para ser homens deste século, é preciso que reneguemos dos nossos maiores.
Todavia alguns indivíduos há aí, que ainda gemem vendo a destruição das venerandas memórias dos tempos gloriosos de Portugal: ainda há quem lute contra a torrente de barbária, que alaga esta terra, tão rica de recordações, as quais homens, cujos pensamentos e desejos só se inclinam para o lodo, pretendem de todo aniquilar. — O grito de indignação, que soltámos há tempos contra o vandalismo desta época, achou eco, por várias partes do reino, em corações ainda portugueses. Temos recebido algumas cartas, que sentimos não poder publicar nos estreitos limites de um semanário como este. Há em mais de uma delas a eloquência da convicção e do despeito profundo: há nelas um protesto soleníssimo de que ainda nem todos os filhos de Portugal venderam sua alma ao demónio das devastações: há nelas uma prova indestrutível de que o ruído dos alviões e picaretas não basta para afogar os brados da boa consciência, da razão, e do amor de Pátria. Lendo-as, o sangue referve nas veias contra essa ideia fatal, que entrou na máxima parte dos entendimentos, de que tudo quanto é antigo é mau, ou de pouco momento, quando a pior coisa que há, e essa ideia dominante da nossa época; a mais ridícula o seculo que a admitiu; a mais detestável a mão que a traduz em obras, estampando sobre a terra da sua infância a inscrição que o ateu manda pôr sobre a sua campa: — Aqui é o sepulcro do Nada! —


Vista parcial da nave principal, antes e depois do restauro de 1970/71.
Quando no segundo artigo, que escrevemos acerca dos monumentos, apontamos várias assolações feitas pelos arrasadores, não nos esquecemos das dos reformadores, e repartimos com justiça, segundo nos parece, a porção de honraria que tocava a cada uma destas castas de vândalos, conforme os méritos de uns e de outros. Falando dos renovadores, caiadores, ou enlambuzadores de monumentos, espécie mestiça entre os homens de juízo e os furiosos mentecaptos do camartelo; espécie demente, que nuta entre o passado e o presente; espécie absurda, que crê em Deus, e não na arte; espécie, cujos caracteres distintivos andam soltos pelas páginas do Lutrin e do Hissope, de D. Juan e de D. Branca; quando deles tratámos, repetimos, não nos esqueceu mencionar o crime de lesa-arte, lesa-gosto e lesa-razão, que em Guimarães se cometera, nos reparos e concertos ultimamente feitos em Santa Maria da Oliveira. Passámos de leve sobre este facto, porque muitos outros não menos vergonhosos tínhamos de notar. Há pouco tempo, porém, recebemos uma carta, em que miudamente se nos narrava esse espantoso vandalismo, com tal força, pureza de estilo, inteligência da arte, e conhecimento da história, que bem se via que ela fora escrita por mão portuguesa, e por coração português ditada. Dói-nos em verdade, o não podermos publicá-la; que mais honra faria a este periódico do que a nossa pobre escritura; mas a vastidão da matéria que tratámos, e que, não poderemos incluir em um só artigo, nos constrange a resumirmos aqui essa valiosa carta.
Pormenor de um pilar do transepto, antes e depois do restauro de 1970/71.
A igreja da colegiada de Guimarães, alevantada por D. João 1.°, era um dos mais belos monumentos da arquitectura gótica. O seu tecto de grossas vigas, lavradas primorosamente, constituía com o da sé do Funchal todas as riquezas monumentais, por nós conhecidas, que Portugal possuía deste género de tectos; porque na idade média se empregou geralmente a abóbada de pedra para cobrir os templos, sendo talvez raríssimo em o nosso país outro qualquer tecto daquela matéria. Além disso as bem proporcionadas arcarias, os capitéis adornados de esculturas variadas e subtis, as três naves majestosas, divididas por formosos pilares, inspiravam em subido grau aquele respeito saudoso, que só sabem produzir as igrejas góticas. Os anos não tinham passado em vão sobre o monumento: arruinado cm partes, carecia de reparos: o cabido ajuntou para isso grossas somas: chamaram-se obreiros; e há sete ou oito anos que estes lidam por apagar todos os vestígios da antiga arte: quebraram-se os lavores dos capitéis e cornijas: substituíram-se com pedras brancas; estas pedras cobriram-se de madeira: esta madeira dourou-se, pintou-se e caiou-se: — o templo do Mestre de Avis lá está alindado; lá está coberto do arrebiques: os que deviam conservar-lhe com todo o esmero a majestade de suas cãs; os que deviam gastar as somas que possuíam em buscar, não quem o remoçasse, mas quem o conservasse com seu aspecto de veneranda antiguidade, fizeram da casa do Senhor uma velha prostituta, que esconde as rugas debaixo da alvura e do carmim emprestados; blasfemaram de Deus, não com blasfémias de palavras, mas com blasfémias de obras: deram, enfim, um documento incontrastável de que não havia aí um só homem, que soubesse a harmonia que existe entre a arquitectura e a religião; que se lembrasse de que o livro da lei e o templo são dois tipos sensíveis, dois verbos que explicam, um aos ouvidos, outro aos olhos, a mesma ideia religiosa, e que, porventura, é tão ímpia a mão que rasga o livro de pedra, como a língua que renega do verbo que está escrito.
E os habitantes de Guimarães que disseram, durante oito anos que os vermes andaram a roer naquele cadáver?
Louvaram o bonito da nova obra: e alguns há que já se lembram [segundo nos diz o nosso correspondente] de demolir os restos das venerandas muralhas, que de tantos combates são testemunhas, e de pôr ao livel do chão as paredes que ainda existem dos paços de D. Henrique; dos paços, onde D. Afonso 1 .º nasceu, e onde, passados anos, entrou vitorioso do sua mãe, que vendera a terra de homens livres por preço do amor do estrangeiro. Arrasar-se-ão, pois, os restos dos muros alevantados pelo rei lavrador, e os paços dos nossos primeiros monarcas, e apenas ficara aí o frontispício da antiga colegiada, como esquecido pelos vândalos do pau dourado, e do estuque, enquanto se aguçam as picaretas que o devem derrubar, ou se vai delindo a cal, com que, para rasgar de todo o último documento de nobreza da velha Guimarães, se há-de branquear e estragar esta última página do passado, para consolação e regalo da ilustradíssima geração actual.
E haverá um governo que o permita?

Nave principal, vista da capela-mor, antes e depois do restauro de 1970/71.
Fora necessário, que se entendesse, enfim, que qualquer monumento histórico não pertence ao município dentro de cujo território jaz; mas que pertence à nação toda; porque nem a mão poderosa, que o fez erguer, regia só esse município; nem as somas que aí se despenderam foram tiradas só dele; nem a história, que requer para documentos essas pedras antigas, é a história de uma vila ou cidade única; mas sim a de um povo inteiro. Se, por exemplo, aos habitantes de Guimarães não importa perderem os testemunhos perenes de que a sua vila foi a primeira cabeça do reino; se não lhes importa que o estrangeiro, sabendo pelos livros, que ela o foi, vá examinar os monumentos, que os mesmos livros dizem aí existir, e que, achando-os convertidos em pavimento de calçadas, fuja espavorido temendo alguma    frechada, ou azagaiada, como se estivesse nas solidões da América: se não curam da própria glória e honra, consentindo que as suas autoridades municipais sejam da família arrasadora; que o seu clero deturpe com mentirosos arrebiques o velho e venerando santuário; ao menos, que as autoridades supremas não dêem documento ao mundo de égua ignorância e barbária, e que provejam na conservação do que ainda resta, em quanto uma lei sobre os monumentos não quebra por uma vez as picaretas e alviões, que tantas esculturas tem roçado, tantas colunas partido, tantas torres e coruchéus derrubado.
Nave do lado do Evangelho, antes e depois do restauro de 1970/71.
Dessa lei, e de muitas outras coisas nos cumpre ainda falar: ficarão para outro artigo, que este vai já largo; e desmarcado fora, se tudo o que devemos dizer, nele o houvéramos de incluir.
[Texto de Alexandre Herculano, originalmente publicado sem assinatura]
O panorama: jornal literário e instrutivo da Sociedade Propagadora dos Conhecimentos Úteis Vol. III, 3.º da 1ª Série, N.º 93, 9 de Fevereiro de 1839, p. 43-45

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