Reinaldo Ferreira, o Repórter X |
Reinaldo
Ferreira (1897-1935, o Repórter X,
é uma ave rara. O escritor Ferreira de Castro classificou-o como “um
grande jornalista português, decerto o mais estranho de todos”,
embora ele não fosse exactamente um jornalista, daqueles que têm
que cingir a sua escrita à realidade dos factos e às fontes de que
se servem. Para Reinaldo Ferreira, raramente o quotidiano, comezinho e
aborrecido, fornecia matéria suficiente para reportagem. Se lhe faltava assunto suficientemente estimulante,
inventava-o, dando livre curso à sua imaginação fértil, muitas
vezes acelerada à força de álcool, de cocaína, de morfina. Terá
sido, entre nós, o inventor das fake news, e
já fazia, com vinte anos de antecipação, o que Orson Wells fez na “radio-reportagem” em que narrou uma invasão de marcianos,
transformando em realidade a ficção da “Guerra do Mundos”, de
H. G. Wells. Em meados de 1917, pôs Lisboa em polvorosa, ao noticiar
um crime macabro e misterioso
que teria acontecido na rua Saraiva Carvalho e que apenas aconteceu
na sua cabeça (relato que,
assumido como ficção, daria um livro, “O Mistério da Rua Saraiva
Carvalho”). Foi a primeira de muitas reportagens inventadas que deu ao prelo.
Diz
a lenda que foi Reinaldo Ferreira quem recolheu as últimas palavras
de Sidónio, quando sucumbia no atentado de que foi alvo no Rossio,
em 14 de Dezembro de 1918: “Morro eu, mas salva-se a Pátria”.
Palavras que nunca terão sido proferidas e que, seguramente, nenhum
dos que na altura estavam junto do presidente-rei escutou. Mas que
Reinaldo Ferreira, que estava longe do local, por se ter atrasado
para a reportagem que lhe estava distribuída, “ouviu”. É, entre outras peças do género, autor de entrevistas à famigerada Mata-Hari e ao criador de Sherlock
Holmes, Conan Doyle, sem nunca ter falado com os entrevistados.
Enviado
à Rússia pelo jornal onde
trabalhava na altura, o
espanhol ABC,
para testemunhar e relatar os acontecimentos que se seguiram à morte
de Lenine, não terá passado de Paris, por não ter conseguido visto
para entrar no país dos sovietes. O que não o impediu de “enviar
de Moscovo” uma série de crónicas aparentemente bem informadas e
carregadas de pormenores que deliciavam os seus leitores.
Adoptando
o pseudónimo de Repórter X,
escreveu para diversas
publicações
periódicas,
como O
Século, onde se iniciou aos 17
anos, o Primeiro de Janeiro,
o Domingo Ilustrado ou
a A Ilustração.
Entre 1930 e 1935, ano do seu desaparecimento, publicou uma revista
cujo, título era o seu pseudónimo, Repórter X, que
se apresentava como um semanário de grandes
reportagens e de crítica a todos os acontecimentos sensacionais de
Portugal e Estrangeiro.
É lá que encontrámos um
texto em que relata estranhas aparições nocturnas do “fantasma de
S. Torcato” pelos telhados de Guimarães, em que refere duas
reportagens que tinha publicado anteriormente, uma que saiu na
revista Ilustração, sobre Agapito Alves Pinta, um singular
sineiro de S. Torcato (que o meu amigo Nuno Saavedra me fez chegar há
dias) e outra, publicada no Primeiro de Janeiro, sobre um
crime macabro e estúpido que abalou Guimarães no final de 1927, o
homicídio do gerente do Banco Nacional Ultramarino, Luís Ribeiro
Pousada, história que também merece ser contada.
Comecemos pelas aparições do
fantasma de S. Torcato.
O
fantasma de S. Torcato passeando pelos telhados de Guimarães
Duas
reportagens velhas e uma da actualidade — O Santo Um cadáver
intacto durante 1.200 anos — Um crime e uma confidência — A
seita — Fantasmas civilizados
ANTES
de entrar no âmago deste mistério, vou recordar duas velhas
reportagens... Uma refere-se ao sineiro do templo de S. Torcato.
Tinham-me falado num fenómeno de precocidade artística — um petiz
de 10 anos que, empoleirado num banco e sacudindo as cordas num
êxtase de pianista inspirado, arrancava ao bronze dos sinos divinas
harmonias como se as almas de Beethoven, Schubert, Mendelssohn, cujas
composições ele interpretava... de ouvido, voassem em redor daquela
pequenina alma, guiando-a generosamente. Quis conhecê-lo. S. Torcato
é um arrabalde de Guimarães, e o Santo, milagreiro entre os
maiores, é adorado pelo povo, que todos os anos, no seu dia, enche o
campo que cerca a igreja com as cestas da merenda, os pichéis do
vinho, os flirts ingénuos, os descantes, as rodas, a alegria
berrante e vistosa das romarias minhotas. O pequeno sineiro foi o
pretexto. Entrevistei-o. Esqueci-me já do que ele me disse, O
interesse da reportagem foi muito outro. É que o templo conserva o
cadáver intacto do próprio S. Torcato — exposto aos crentes e
curiosos numa urna de cristal, envergando vestes doiradas e com a
cabeça, coberta pela mitra, pousada numa almofada alvíssima.
S.
Torcato, antes de ser santo, era um luso bravo e valente. Bispo e
guerreiro, agrupava à sua volta os patriotas e atacava rijamente os
mouros invasores. Ao defender Braga — ou Guimarães, não estou
certo — recebeu um golpe de adaga que lhe cortou as carótidas...
Isso foi, senhores, alguns séculos antes da fundação da
nacionalidade. Ficou, como perfume mágico estagnado na atmosfera, a
fama da sua santidade, dos seus milagres e do misterioso
desaparecimento do seu cadáver. Tinham-no visto cair; correram a
buscá-lo — e já lá não estava, como se a terra tivesse
alçapões, ou como se a carne houvesse ascendido ao céu, juntamente
com a alma... Só dois séculos depois o cadáver de Torcato, bispo e
guerreiro, foi encontrado, tal e qual como a tradição dizia que ele
tombara. “É Santo!” — gritou o povo. E o papa canonizou-o.
Ergueu-se o templo — e no seu templo repousa ele, inquietado apenas
pelos olhares pasmados dos visitantes... Realmente é um fenómeno ou
um milagre impressionante poder olhar-se, ver-se o corpo de um
morto de há mil e tal anos, tão sereno, tão perfeito, tão humano
como se fosse um conterrâneo nosso que tivesse adormecido. Tirando a
cor da epiderme, demasiado escura, e a sensação de dureza que ela
dá — nenhum outro detalhe perturba o sono daquele santo..
A
outra reportagem e mais triste. Um crime alvoroçara o Norte...
Aparecera semi-afundado no lodo de uma cova, nas vizinhanças de
Guimarães, o gerente da filial de um Banco. Não quero escrever
nomes nem recordar episódios, tão doloroso é esse drama — e já
que o criminoso também morreu, de nostalgia de liberdade, ao ser
condenado à pena máxima. Quero apenas evocar o seguinte capítulo:
o Janeiro confiara-me
esse assunto e durante uma semana não saí daquela cidade — que é,
sem dúvida, a mais característica de Portugal. A minha reportagem,
por ser justa, generosa e serena, provocara simpatias. Essas
simpatias provocaram confidências. Chamaram-me uma madrugada a uma
sala deserta do hotel, onde uma das pessoas mais categorizadas de
Guimarães, pedindo-me para nunca revelar o seu nome — pois isso
podia causar-lhe a morte —, me denunciou a existência de um
grupo misterioso de jovens que se muralhavam como numa seita
hermética e que se dedicavam ao culto de ciências secretas, algo de
magia medieval agravada pelos recursos actuais do saber humano. E
narrou-me casos, factos, bruxedos, feitiços, que me teriam provocado
o riso se não fosse a associação que aquele indivíduo dava ao
crime e à seita, unindo as duas coisas com argumentos tanto mais
eloquentes quanto eu conhecia alguns — embora não tivesse nunca
pensado nessas misteriosas raízes,
Escutei-o;
não consegui dormir aquela noite, como uma criança após um conto
de papões, e não ousei nunca reproduzir a conversa.
*
* *
Eis
o que um dos nossos amigos de Guimarães nos escreve: “Era
necessário que Vv. enviassem um dos vossos repórteres a esta
cidade, onde se passam factos dignos de serem revelados e...
perseguidos. Fez-se constar que o corpo de S. Torcato desaparecera e
ainda está para se descobrir o segredo “de quatro horas”
de um dia da semana passada, durante as quais no próprio templo se
propagou essa notícia. A verdade é que andam a adoecer os espíritos
com ameaças de fantasmas e aparições, exigindo-se, por meio desses
bruxedos, prémios que quando não são materiais são morais —
porque correspondem à vergonha de algumas famílias honestas. Só
parte da população conhece essa epidemia de medo — visto que os
heróis desta conspiração obrigam as suas vítimas a não
propagarem o que lhes sucede. V. sabe que eu estou para casar — e
as noivas, quando são honestas, não têm segredos para os futuros
maridos. Ora, precisamente, os meus futuros sogros são das muitas
vítimas dessas chantages. Uma noite, encontrei a minha noiva
nervosa. Interroguei-a — e ela confessou-me a verdade. Andava um
fantasma... pelo telhado da casa — e parecia ser o fantasma de S.
Torcato. Nada lhe disse das minhas intenções, ocultei-me, esperei —
e vi. Vi um vulto estranho, assustador, deambular sobre as telhas,
gesticular, guinchar, soltar o “grito de Siva”, aparecer e
desaparecer. Que se trata de uma mistificação, não duvido — mas
não grosseira, à moda antiga. Os cavalheiros dispõem de processos
modernos para que a ficção seja completa: faróis, sombras
artificiais, balandraus com escamas-electrizadas (?), etc..
Confesso que o tal fantasma aflige... como se o fosse de facto. Outro
dia, no Café Egípcio falou-se muito de um outro fantasma de S.
Torcato que surge cm certa quinta dos arredores. Também houve quem
visse um “auto” apetrechado especialmente para... estes films,
projectando luzes sobre certa janela; e graças a essas luzes
desenhavam-se silhuetas misteriosas nos cristais. Um detalhe para
terminar. Após uma dessas aparições, percorri o telhado e
encontrei um... botão de osso... Não creio que os fantasmas
usem desses detalhes de toilette. E todo o jogo da seita (que
pratica missas negras e faz evocações extravagantes) gira à volta
de S. Torcato. Por muito pouco católico que eu seja — repugna-me
sobretudo esse sacrilégio. Mas o romance tem muitos capítulos.
Venham cá — e verão!...”
Iremos...
Repórter
X, n.º 46, ano I, 20 de Junho de 1931. pp. 7 e 14.
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