Sobre a "Servidão de Vassoura"

D. João V
A origem da tradição da “servidão da vassoura” de Barcelos a Guimarães uma história ainda mal contada, sobre a qual já muito escrevemos aqui. Na revista Ilustração, publicada pela Aillaud, na sua edição da primeira quinzena de Agosto de  1935,encontrámos um texto que toma as dores das gentes barcelenses. O texto contém algumas incorrecções (desde logo, uma das duas freguesias que terão sido entregues a Guimarães para remissão da servidão pelo concelho de Barcelos, que teria deixado de ser cumprida por vereadores da sua Câmara, para passar a recair sobre os muradores daquelas freguesias, não se chama S. Miguel da Concha, mas S. Miguel de Cunha), mas vale a pena ser lido. Aqui fica, com as ilustrações que o acompanhavam.

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Três séculos de escravidão

Os moradores da vila de Barcelos forçados a varrer as ruas de Guimarães


Quando D. João I tomou Ceuta aos mouros no memorável dia 21 de Agosto de 1415, repartiu a defesa da muralha da praça pelos vários soldados das cidades e vilas do continente. que o haviam ajudado nessa difícil empresa. Neste sector ficaram os de Barcelos. naquele os do Porto, naqueloutro os de Guimarães, e assim sucessivamente.
Em dada altura, os mouros, expulsos de Ceuta, não se conformando com o revés, voltaram á carga, num ímpeto furioso, tentando a escalada. Todos se bateram bem. com verdadeiro denodo, tanto os de fora como os de dentro, honrando a bandeira da sua pátria.
Prosseguia o ataque cada vez mais encarniçado, quando a gente de Barcelos, tomada de desânimo, abandonou o seu posto que os atacantes não tardariam a ocupar. Neste momento, a gente de Guimarães, vendo a fuga dos de Barcelos, dividiu-se em dois terços, um dos quais sustentou o posto que lhe pertencia, indo o outro ocupar o lugar que os barcelenses tinham abandonado. Portaram-se valentemente e os mouros não conseguiram pôr o pé na fortaleza.
D. João I, furioso com a atitude dos de Barcelos, não se limitou a castigá-los duramente, quis que a seu opróbrio caísse sobre todos os filhos da risonha vila minhota — e através dos séculos!
Assim, ordenou que os moradores de Barcelos ficassem escravizados a Guimarães que os forçaria a varrer as suas ruas e praças, sete vezes em cada ano, vestidos de vermelho e com um pé descalço e outro calçado.
Este opróbrio para os de Barcelos durou sessenta anos. Nesta altura, o conde de Barcelos e duque de Bragança. D. Jaime, tentou terminar com uma tão ignominiosa servidão, valendo-se de toda a sua poderosa influência. Todavia, a ordem ditada pelo falecido rei D. João I era categórica e não admitia subterfúgios. Não desanimou o conde, acabando por contratar com a câmara de Guimarães, ceder-lhe as duas freguesias de S. Miguel de Concha e de S. Paio de Ruilhe que eram do termo de Barcelos de que o nobre titular era senhor, transferindo para os moradores das ditas freguesias a servidão que pesava sobre a gente da sua vila.
Poi assim que se conseguiu, à custa da escravidão destes dois povos, salvar da vergonha e do ridículo os vereadores da vila que era cabeça de condado!
Um lindo trecho de Barcelos
Em dado momento, o famoso poeta e jurisconsulto Gabriel Pereira de Castro procurou pôr termo a uma tal servidão que pesava sobre inocentes alheados por completo do acto de cobardia praticado em Ceuta. Como alguns caseiros seus tivessem sido multados em seis mil réis cada um por não comparecer à varredela vimaranense, o enérgico autor da “Ulisseia”, valendo-se das suas habilidades de advogado, apelou para os tribunais competentes. Correu um pleito, mas, apesar de todos os esforços empregados pelo dr. Gabriel Pereira de Castro, os de Guimarães obtiveram sentença favorável.
E os desventurados povos de Concha e Ruilhe tiveram de suportar a ignominiosa afronta durante muitos anos ainda Finalmente, D. João V, ao ter conhecimento de tão iníqua sentença, acabou com ela, assinando a seguinte provisão:
“D. João, por Graça de Deus, rei de Portugal, etc. — Faço saber, que havendo respeito, e me representaram por sua petição os moradores das freguesias de S. Miguel de Concha e S. Paio de Ruilhe da Sereníssima Casa de Bragança, que havia mais de trezentos anos se achavam obrigados pela câmara da vila de Guimarães a uma servidão injuriosa, de irem sete vezes no ano a varrer a praça, terreiro e açougue da mesma vila. por cada vez três homens das ditas freguesias, a quem cabia por distribuição, aos quais vestiam na câmara uma opa vermelha, com barrete da mesma cor, de que saía uma ponta pelas costas até o talar, e a espada que levavam lha metiam em um cinto amarelo às esquerdas e, os faziam descalçar um pé e perna, ficando com o outro calçado, pondo-lhes ao cinto o sapato e meia, que tinham descalçado, e sendo conduzidos por um guarda, que havia para isso deputado, os faziam exercer aquela vil servidão assim como os das galés, estando os suplicantes sujeitos a esta servidão debaixo de grandes penas, com que eram vexados, na falta de assim servirem, padecendo grandes injúrias e ludíbrios de apupos dos rapazes e outros semelhantes, nas ocasiões desta servidão; a qual se dizia era fundada por uma sentença que havia do senhor rei D. João I, que tinham os vereadores da dita vila de Guimarães em seu poder, por haverem estes suprido a falta, que não chegaram a ocupar por medo ou fraqueza a ordenança de Barcelos, sendo-lhe destinado o sítio, ou estança para o assalto da praça de Ceuta, por cuja causa proviera aos vereadores da dita vila de Barcelos esta servidão, e o conde da mesma vila, pelos livrar, a impureza aos suplicantes que sendo nesse tempo do termo da vila de Barcelos, fizera passar as ditas freguesias para o termo da vila de Guimarães.
Ruías do Castelo de Guimarães
“E visto o que alegaram e constou das informações do provedor da comarca da dita vila de Guimarães, e ouvidos os oficiais da comarca dela. e remetendo a cópia da primeira obrigação que os suplicantes fizeram, e por não satisfazerem com os documentos em que fundaram a sua resposta, foram por especial ordem minha notificados para que os ajuntassem, ao que não satisfizeram, e pretendiam ser nesta corte ouvidos; para o que se mandou ao corregedor do cível da cidade, Simão da Fonseca e Sequeira, que no termo de oito dias os ouvisse, e com o que os suplicantes disseram, e novamente os suplicados representaram; tendo outrossim já sido ouvida a nobreza e povo da e pediam se conservasse a dita servidão como privilégio à Senhora de Oliveira da dita vila, e que sobre a posse dela os poderiam os suplicantes demandar pelos meios ordinários; e porque os ditos vereadores da vila de Guimarães mais obrigavam os suplicantes para sinal e reconhecimento da sua servidão, com vestes e insígnias ignominiosas, de que por haver daquela limpeza necessidade, pois os lavradores a façam por conveniência própria das suas fazendas, mandando quotidianamente varrer as ruas. praças, terreiros e açougues.
Barcelos libertava-se finalmente daquela ignominiosa servidão que durante sessenta anos afligiu os seus moradores e durante mais de dois séculos e meio envergonhou os brios dos honrados barcelenses nas pessoas dos filhos das freguesias de S. Miguel de Concha e de S. Paio de Ruilhe dadas como resgate à voracidade do ogre vimaranense.
Não nos admira que o fundador da segunda dinastia, estribado nos usos e costumes do seu tempo, desse largas à sua fúria, castigando a vila de Barcelos com tão iníqua sentença. O que nos causa espanto é que a câmara de Guimarães, trezentos e tantos anos depois, ainda se empenhasse no cumprimento de tal pena, cujo proveito se resumia em apoucar e ofender os vizinhos barcelenses. Isto depois de lhe ter apanhado duas freguesias como compensação.
Uma tão feia acção não está à altura da nobreza da terra vimaranense que pode orgulhar-se de ter sido o berço da nossa independência e soberania.
Que os soldados barcelenses enviados a Ceuta não se portaram bem na defesa da praça, todos nós sabemos; mas poderiam os restantes filhos da risonha vila minhota ser responsáveis pelo desânimo de alguns?
D. Afonso Henriques e D. João I
Quando Afonso Henriques, organizando as suas legiões, talhou a golpes de montante a nossa nacionalidade. encontrou alguma vez desfalecimento nos soldados que foi buscar a Barcelos?
Temos a certeza de que, ao ser conhecida no continente a triste notícia da falta de bravura desse punhado de soldados, foi a vila de Barcelos a que mais lamentou um tal facto que contrastava deploravelmente com a galhardia dos vimaranenses.
Foi cruel a justiça de D. João I, que poderia ter-se limitado ao castigo dos culpados. E. se algum opróbrio desejava lançar sobre a vila que lhe entregara tais filhos, desse lhe, ao menos o direito de reconquistar o seu brio por um feito notável que não lhe faltariam ocasiões nessas eras de contínuas batalhas e conquistas.
Não seria em vão que os barcelenses voltariam a empenhar-se em lutas renhidas e sanguinárias como o fizeram com Afonso Henriques, antes de Giraldo o Sem Pavor ter aparecido em Évora na escalada da famosa torre.

Ilustração, N.º 231, Lisboa, 1 de Agosto de 1935

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