Guimarães, por Francisco Martins Sarmento

Francisco Martins Sarmento (em pé, primeiro à esquerda) em jovem, com um grupo de amigos (de pé: Visconde de Pindela e Conde de Margaride; sentado: Domingos Martins da Costa (Aldão).

Na juventude, Francisco Martins Sarmento, como a maioria dos jovens do seu tempo, foi poeta, chegando a publicar um livro com o título de "Poesias", no ano de 1855, onde se incluía, a abrir, o poema em que falava da sua terra afonsina. Aqui fica. As notas são da edição original.


GUIMARÃES

Eu sou o berço vetusto
Do primo Rei Português;
Eu sou o velho guerreiro
De feitos, que ninguém fez.
Ao furor de mil batalhas
O meu peito de muralhas
Opus com frio desdém;
Bati o cão muçulmano,
E, ao meu torvo olhar, o Hispano
Os montes dobrou d'além.

Fui valente entre os mais fortes,
Dos belos o mais gentil;
Não achei rivais na terra,
Ao menos um entre mil;
Dos crentes fui o, mais puro;
Dos guerreiros o mais duro;
Na paz o mais folgazão;
Hoje... sem c'roa, nem ceptro,
Não sou mais que feio espectro
Das minhas glórias d'então.

Em torno a mim vi surgirem
Novas cidades do pó;
Vi enfeirarem-se as velhas,
Que loucas! metiam dó.
Eu... velho, de velha usança,
Não quero mais que a lembrança
Do que fui, do que vali;
Português d'antiga raça,
Não me avilto na desgraça,
Mandei, sim, nunca pedi.

Bajulai os pés do trono,
Cobardes, fracas e vis;
Mendigai brasões; no lodo
Manchar que importa a cerviz?...
Zombai, escravas vaidosas,
Das minhas glórias famosas,
Dos meus famosos heróis;
Que nos meus andrajos pobres,
Mesquinhas cidades nobres,
A par de mim – oh! que sois?...

Tu mesma, Lisboa, cora.
Terra sem par na altivez;
Lembra-te que outrora, escrava,
Grilhões rojaste a meus pés;
Sim, tu, descrida agarena,
Que dos combates na arena
Dum golpe só eu venci;
E hoje... hoje... rainha!... seja;
Mas na agonia não veja
Finar-me, esquecido, aqui.

Sim, eu morro, e vai comigo
A minha mãe infeliz;
Falta-lhe o braço d'Afonso,
A fé, que teve um Moniz;
E eu, velho, já desarmado.
Tenho só meu triste brado,
Da agonia a extrema voz;
E, donde as raças se escondem,
Com maldições me respondem
As cinzas dos meus avós.

Eu bem vos disse, monarcas,
Nas eras que longe vão,
Que no caminho do oceano[1]
Acháveis a perdição.
A vaga rolou-vos oiro;
Mas o negro e triste agoiro
Não foi mentido, não foi.
Chorai... e eu, quebrada a lança,
Hei-de também, qual criança,
Chorar só, um velho herói!...

Não... sim, que a minha armadura
Sumiu-se em cinzas no chão;
Contra mim alçou o século
Cruel, sacrílega mão;
E um só brado dum só peito[2]
Soou, perdeu-se desfeito,
E a mão feriu com furor.
Caí da minha grandeza;
Pouco hoje atesta a rudeza
Do fero pelejador.

De sete fortes castelos,
Que tive de meu — eu só —
Resta-me um, que os outros todos .
Não são hoje mais que pó.
Eram vivas sentinelas,
Ferozes, altivas, belas,
Do meu domínio real;
Cada massa de granito,
Era mais que um livro escrito,
Ira um brasão colossal.

Aqui e ali espalhados,
De provada solidez,
Podeis ver, inda soberbos,
Pedaços do meu arnês:
— De mil ameias dentadas,
Rijas muralhas, crestadas
Pelo bafo secular.
Mais grato o tempo, à passagem,
Por lauréis verde ramagem
Quis nas fendas pendurar.

Se alguém das raças vindouras
Se lembrar do velho rei,
Esses muros, se existirem,
Lhe dirão se eu governei.
Dir-lho-á, alçando a fronte,
Recortada no horizonte,
Essa torre onde eu nasci,
Gigante das velhas guerras,
Que vê por cima das serras
Sumir-se as raças, e ri.

Vede-o. Seus dentes agudos
Parece cravar no céu!
Foi o berço que me deram,
Há-de ser meu mausoléu.
Forte, em pé, jamais se abala;
É em vão que o raio estala,
Leve mossa apenas fez.[3]
Só tu, co'essa catadura,
Podes ser a sepultura
Do mais velho português.

Cerrem-se aí as memórias
Do vetusto Guimarães;
Seja esse o meu livro eterno,
— Portugal! pouco mais tens!
— Fulminai com dura guerra
Quem ousar lançar por terra
Esse brasão imortal;
Esse berço, onde dormira,
Do infiel sorrindo à ira,
A infância de Portugal.[4]


NOTAS:

[1] … se fundou uma torre... tem a sua porta... e ao entrar dela à mão esquerda... em uma pedra as letras seguintes =Via maris. = Carvalho — Corografia.
[2] Se nos não enganamos, foi o Snr. Gomes de Abreu quem censurou (com toda a razão) a C. de Guimarães, que mandou derrocar a penúltima torre.
[3] Um raio derribou-lhe uma das ameias.
[4] Pouco tempo depois da publicação desta poesia no Portugal, Guimarães chamava-se Cidade. Já se vê pois, que as jactâncias do velho eram, como as de muita gente, pouco sinceras.

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1 Comentários

Anónimo disse…
Mais uma prova que todos os filhos (de nascimento ou criação) de Guimarães se revestem de uma aura telúrica que ultrapassa o tempo.
Ass: "Um curioso"
PS: Parabéns Prof.