Guimarães e S. Mamede, segundo Santos Simões

J. Santos Simões (12 de Agosto de 1923  23 de Junho de 2004)

J. Santos Simões, cujo centenário se celebra no próximo dia 12 de Agosto — e se continuará a assinalar, pelo menos, até ao momento em que se completarem 20 anos sobre o dia do seu desaparecimento físico, a 23 de Junho de 2004 — é, inquestionavelmente a figura que mais marca a história e a vida cívica de Guimarães da segunda metade do século XX. Conheci-o ainda adolescente, trabalhei com ele no último ciclo da sua vida, os prodigiosos quinze anos que dedicou à Sociedade Martins Sarmento. Como tantos de nós, sou testemunha da sua imensa cultura, partilhada com generosidade e sem sombra de paternalismo, e da sua singular capacidade de trabalho, que dispersava por uma impressionante diversidade de assuntos e de projectos.

Por estes dias — melhor dizendo, por estes meses —, tenho-me dedicado a ler, sistematicamente, a obra de  Santos Simões, nomeadamente o imenso caudal de textos que publicou na imprensa vimaranense ao longo de quase meio século. Dessa leitura, retirei uma confirmação: não há assunto que Santos Simões não tenha tratado, quase sempre com um olhar diferente e numa perspectiva crítica e inovadora.

É o que sucede no texto que aqui reproduzo.

Foi publicado no jornal Notícias de Guimarães, em Julho de 2003, e, a propósito da primeira tarde portuguesa, trata da fragilidade da memória colectiva, em que se julga já saber tudo, desde “sempre, ignorando que “ainda há algo que, se não é novo, ou está esquecido ou querem esquecê-lo”. A sua leitura ajuda-nos a compreender a relação de Guimarães com a Batalha de S. Mamede.

Aqui fica.

 

24 de Junho de 1128

A PRIMEIRA TARDE PORTUGUESA 

por J. Santos Simões

 

Parece que tudo está dito, escrito e até reescrito. Mas ainda há algo que, se não é novo, ou está esquecido ou querem esquecê-lo.

Julgo que não será de todo descabido, afirmar que qualquer pessoa nasce quando sai da barriga da mãe. Creio que não passaria pela cabeça de ninguém comemorar o seu aniversário no dia em que é feito o seu registo de nascimento. Poder-se-ia dar o caso de os pais se esquecerem de fazer um tal registo e, pasme-se, embora de carne e osso, seria um autêntico fantasma!

Por outro lado, as Instituições nascem no dia em que um conjunto de pessoas se reúne em Assembleia Geral e decide criá-las. Também neste caso a data do seu nascimento não é a do reconhecimento oficial. Dois exemplos: A Associação Artística Vimaranense comemorou, até cerca de 1959, o seu aniversário na data em que foi reconhecida oficialmente. Convidado para falar nesta última data, procurei documentar-me acerca da Instituição e verifiquei que tinha sido criada dois ou três anos antes o que teve o mérito de, num ano, ter envelhecido dois ou três. Também foi norma comemorar a fundação da Sociedade Martins Sarmento no dia 9 de Março de 1882, quando a Assembleia constituinte ocorreu em 20 de Novembro de 1881.

Isto vem ao caso de os historiadores darem maior importância a uma bula papal do que ao facto incontornável de o Condado Portucalense se ter autonomizado politicamente naquela longínqua tarde de S. João. A partir daí, deixou de haver Condado porque deixou de existir um conde ou uma condessa mandante, antes um príncipe que conquistou o mando a golpes de montante, com a ajuda dos barões de Entre-Douro-e-Minho. Foi o Portugal menino que nasceu e que depois cresceu e se fez nação.

Tudo o mais é estimável exercício de sábios investigadores, mas que nada retiram ou acrescentam ao facto real que não resultou de mero acaso, mas sim da determinação ousada de quem sabia o que queria.

Esta introdução apenas serve para assinalar a data na justa valia que dela retiro mas que esteve submersa durante séculos e, mesmo nos nosso dias, não logrou afirmar-se como muitos julgam.

Até 1940, o dia 24 de Junho era apenas o dia de S. João e tanto bastava para haver festa. Nas comemorações centenárias, que nesse ano ocorreram, o dia não foi particularmente festejado até porque não pertencia àquele calendário.

O dia dedicado ao município era e foi, expressamente, até 1950 e, por omissão, até 1974, o 8 de Junho, de homenagem a Gil Vicente. Mas nunca foi feriado municipal. Foi preciso catar o calendário jornalístico, ano após ano, desde 1941, para verificar que o dia era lembrado, por mera rotina, quase sempre com uma missa na capela de S. Miguel do Castelo. Em 1942 escrevia-se: realizou-se no dia de S. João, na forma dos anos anteriores, a patriótica comemoração da Batalha de S. Mamede.

E esta associação ao dia de S. João manteve-se, pelo menos, até 1948. O chavão mais usado para assinalar a data era comemoração patriótica, geralmente reduzida a uma escassa dúzia de linhas.

Em 1964, Hélder Rocha na sua crónica no Notícias de Guimarães (NG), Esquina do Toural, sugeria que o 24 de Junho devia ser feriado municipal. Em 1969, no mesmo Jornal, Aurélio Fernando escrevia na 1ª página Esplendorosa a comemoração da Batalha de S. Mamede e, em 1970, a festa, porque de festa se tratou, teve a presença do Presidente da República. Em 1971, o Director deste Jornal, no seu Apontamento da Semana, propunha uma vez mais a criação do feriado municipal. Finalmente, o NG de 23 de Março de 1974 anunciava: Feriado de Guimarães – 24 de Junho.

Não deixa de ser simbolicamente curioso que o primeiro feriado municipal tivesse sido festejado, pela primeira vez, já depois do 25 de Abril. Mas o reflexo jornalístico do evento não ultrapassou, uma vez mais, a rotineira Comemoração Patriótica.

Este relato não significa outra coisa senão que, o 24 de Junho, é de memória recente, mesmo para os vimaranenses, e isso também tem afectado a sua importância e a assunção por parte do poder político central de considerar a data como feriado nacional.

Aliás, o poder político local se quiser lutar pela valia e prestígio indiscutíveis do acontecimento ocorrido naquela tarde de Verão, temperada pelas orvalhadas do Santo, não a pode reduzir à famigerada Comemoração Patriótica, ou a mero passadiço de estrelas, antes deve festejá-la e lembrá-la na sua verdade histórica levando-a às escolas e a, por exemplo, um concurso anual sobre o tema, traduzido nas mais diversas formas de linguagem, desde a poética à artística. A data e  Portugal merecem-no.

E a terminar, aqui fica um contraponto com outra data histórica que é um desafio aos investigadores que ligam mais às certidões passadas por outrem, do que aos actos que, afinal, são a realidade pura e dura.

Como a maior parte das pessoas sabe, a República foi implantada em Portugal no dia 5 de Outubro de 1910. Veio de diligência para Guimarães, onde só chegou no dia 8.

O que talvez muitos não saibam é que a primeira nação que reconheceu a República Portuguesa* foi a Argentina, logo seguida pelo Brasil, em 22 de Outubro de 1910. Os Estados Unidos da América reconheceram-na em 11 de Maio do ano seguinte, e, neste mesmo ano, a França em 25 de Agosto e a Espanha, Grã-Bretanha, Alemanha e Áustria ainda esperaram até 11 de Setembro.

Em que ficamos, a República foi proclamada por nós em 5 de Outubro de 1910 ou temos de escolher uma outra qualquer data ao sabor dos diferentes reconhecimentos dos outros?

*in História Política de Portugal (1910-1926), de Douglas L. Wheeler, p. 79-80, Publicações Europa-América.

 

 



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