O nome do Padrão (01)

O Padrão da Oliveira

Litografia III da obra George Vivian Scenery of Portugal & Spain (1839). Da colecção da Biblioteca Nacional de Portugal).

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A história e o património são imagens de marca de Guimarães e mais-valias culturais e económicas relevantes. Fazem parte da identidade dos vimaranenses e são a força motriz do movimento de atracção a Guimarães daqueles que vêm conhecer a cidade. Têm muitas histórias para contar, mas não necessitam de ser carregadas com acrescentos inúteis que decorrem da ignorância ou da eterna tendência de acrescentar um ponto ao conto que se conta. Só que a história não é feita de contos que brotam da fantasia e da imaginação, que tem horror ao vazio do desconhecido e do por explicar. A história é conhecimento que não mana das nascentes da imaginação que alimentam tradições, mitos e lendas, mas das fontes com que se escreve a história — os documentos. Constrói-se com trabalho de investigação que, quase silenciosamente, nos vai restituindo lentamente o conhecimento do passado. Onde a história não explica, faz sentido embelezar os discursos sobre o património com o conhecimento que se alimenta da tradição, transmitido e acrescentado de geração para geração. Mas não se percebe qual a vantagem de continuar a “vender” os monumentos e a história de Guimarães embrulhados em narrativas e explicações fantasiosas que o conhecimento histórico já desmontou. Esse é o caso do Padrão a que, mesmo em documentos oficiais e na informação institucional dirigida a turistas, se continua a chamar de Padrão do Salado. Fazê-lo é, além do mais, uma forma de desrespeito por quem amou e estudou a história desta terra, que não necessita de adornos artificias, como o saudoso Fernando José Teixeira, que há muito nos demonstrou que o nome Padrão do Salado não é um nome, mas uma desengraçada alcunha de invenção recente.

Arriscando repetir-me, vou tentar explicar por que razão não faz sentido chamar Padrão do Salado ao Padrão da Oliveira. Começo pela transcrição da descrição mais antiga do monumento que conheço, escrita pelo cónego Gaspar Estaço, que vem no capítulo 41.º da sua obra Várias Antiguidades de Portugal, impressa pela primeira vez em 1625. Está lá tudo o que importa saber sobre o mais singular monumento de Guimarães.

 Aqui fica.


Do milagre da Oliveira, de que Santa Maria de Guimarães houve o nome e da vitória de Aljubarrota.

1. Reinando el-rei Dom Afonso IV, se fez a obra do Padrão, que está defronte da porta de Nossa Senhora da Oliveira, como consta de hum letreiro, que nele está, o qual é o seguinte.

AA ◊ Onra ◊ de ◊ Deus ◊ e de Sancta ◊ Maria ◊ e ◊ por ◊ esta ◊ Villa ◊ mais ◊ onrada ◊ seêr e o pôobo ◊ fez ◊ fazer ◊ esta ◊ obra ◊ Pere Steves ◊ de Guimaraens ◊ mercador ◊ morador ◊ em ◊ Lixboa ◊ filho de ◊ Stevão ◊ G.cia ◊ e de ◊ M.ta ◊ Péz ◊ na ◊ era ◊ M ◊ CCC ◊ LXXX ◊ anos ◊ VIII ◊ dias ◊ de ◊ Setembro

◊ M. L. A O F E X ◊

2. Este Padrão é uma Cruz de pedra com a imagem de Cristo crucificado, assentada sobre uma coluna, e coberta de abóbada, que estriba em quatro esteios. A qual obra foi tão aceite a Deus, que naquele lugar se fizeram dali por diante muitos milagres. Duram ainda no arquivo desta Igreja dois pergaminhos, em que alguns estão tresladados, e foram primeiro escritos por um Afonso Pires, tabelião daquele tempo, dos quais nós escrevemos somente o primeiro, pela razão, que logo se verá, o qual é o seguinte.

3. Senhor. Afonso Peres, tabelião na vossa vila de Guimarães, faço saber a v. m. que na Era de M.CCC.LXXX. anos, oito dias de Setembro foi posta Cruz na alvaçaria[1] de Guimarães, e a aduceu[2] um Pedro Esteves nosso natural, filho que foi de Estêvão Garcia em outro tempo mercador em Guimarães, e a qual Cruz Gonçalo Esteves, irmão do dito Pedro Esteves, diz que foi vontade de Deus, que lhe deu a entender que fosse a Normandia Anafrol[3] e que comprasse a dita Cruz, e a aducesse a este lugar de Guimarães, onde está assentada a par da oliveira, a qual oliveira, quando esta Cruz a par dela assentaram, era seca, e daquele dia a três dias começou de reverdecer e deitar ramos, e eu Afonso Peres, tabelião, isto escrevi.

4. Não escrevo os outros milagres, porque já andam num livro de letra de mão. Este trouxe, para que se saiba a origem do título da Senhora, que nesta Igreja é venerada: porque, até ao tempo dele, acho que se chamou Santa Maria de Guimarães e, depois dele, Santa Maria da Oliveira. Note-se de passagem, que deste milagre não fomente ficou à Senhora o título da Oliveira, mas esta Igreja e esta Vila tomaram por insígnias a imagem da mesma Senhora com um ramo de oliveira na mão.

5. E, tornando ao padrão, debaixo do coberto dele, em lugar levantado, se pôs uma imagem desta Senhora, e todos os milagres que naquele lugar se faziam, à Virgem Sagrada se atribuíam e a ela, e por amor dela, eram ali trazidos os aleijados e enfermos. A este padrão vai o cabido em Procissão todas as sextas-feiras e sábados de todo o ano, pelos reis fundadores e benfeitores.

6. E, em particular, véspera de Nossa Senhora de Agosto, faz uma procissão solene com os frades de São Domingos e São Francisco, Câmara e povo e, depois que se recolhe, se diz missa e pregação naquele lugar por memória da vitoria de el-rei Dom João I, havida em tal dia, e se põem ali, em lugar alto, a lança e veste, com que ele entrou na batalha.

7. Festeja esta Igreja aquele dia cm louvor da Senhora da Oliveira, que deu a vitória a el-rei, como ele confessou, e lhe veio dar as graças, e por isso a honrou com lhe mandar fazer duas casas: esta, e outra no lugar da vitória, muito mais avantajada em grandeza, artifício e majestade. Parece-me, se me não engano, que cá, onde a Senhora tinha sua habitação, houvera de ser feita aquela, e esta lá, por troféu da vitória, mas, como ele escolheu aquela para sua sepultura e de seus descendentes, meteu-se a humanidade nisto, e trocou as sortes. Chama-se esta Nossa Senhora da Oliveira e a outra vulgarmente Nossa Senhora da Batalha, ou da Vitória, devendo de se chamar também, e com muita razão, da Oliveira, pois esta Senhora é a que deu a Vitória e a que el-rei quis honrar, pela mercê, que lhe fez.[4]

8. Era naquele tempo esta Igreja tão antiga, arruinada e pobre, que impetrou o cabido da Sé Apostólica indulgências para se fazer de esmolas, de que há memórias no arquivo, e por isso a bendita Senhora, estando el-rei para dar a batalha, lhe mostrou a sua casa tal qual era, com a oliveira, que ele reconheceu muito bem, quando lhe veio dar as graças, como mais adiante se dirá.

9. Foi ocasião a vitória, com que ela proveu não somente no edifício, que el-rei lhe fez, mas nos privilégios muito grandes que lhe deu, e principalmente na renda dela, porque poucos anos depois lhe foram anexados três mosteiros, com que estes benefícios, que então rendiam, pouco mais ou menos, três mil réis, muito cedo renderam oitenta, e agora rendem mais de cento e sessenta. E assim se escusou o breve das indulgências, e os benefícios foram logo estimados, e a Igreja frequentada e bem servida, e a Sereníssima Rainha do Céu, benemérita da Casa Real, muito mais honrada e venerada.

Gaspar Estaço, Várias Antiguidades de Portugal, Impressor Pedro Crasbeck, Lisboa, 1625, cap. 41, pp. 156-158.



[1] Termo de significado obscuro. Os dicionários em que aparece remetem para este excerto da obra de Gaspar Estaço, assumindo que poderia ser lapso, aparecendo em vez de alcaçaria. A haver erro não é da transcrição de Gaspar Estaço, pois já estava assim no documento original. Por outro lado, não se percebe bem a hipótese alcaçaria, que significa: casas nobres, paços, fábrica de curtir peles, pelame, curtume ou lugar onde os judeus faziam comércio.

[2] Aduziu(?), do verbo aduzir, com o significado de trazer ou transportar. Na poesia medieval galaico-portuguesa surge na forma de aduzer.

[3] Anafrol é como se designava em Portugal à cidade francesa Honfleur.

[4] Damião de Góis lhe chama Nossa Senhora da Vitória, na Crónica R. Manuel, p. I. Cap. 45. [nota de Gaspar Estaço.] 

Estaço remete para a passagem da Crónica do rei D. Manuel I, em que, referindo-se à trasladação dos restos mortais do rei D. João II, escreve: “havendo já quatro anos que falecera, el-rei Dom Manuel ordenou que seus ossos se trasladassem ao convento da Batalha, da avocação de Nossa Senhora da Vitória, da ordem de São Domingos dos pregadores”.

[Continua aqui]

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