Esse sorriso faz-nos falta.

 


Era de noite, em sítio esquecido, onde ainda não chega a ‘internet’ e a rede de telemóvel é anterior à Idade da Pedra, quando fui atropelado pelo espanto que me chegava do lado. Morreu a Francisca. Não acredito. Ainda há dias tinha percebido o seu sorriso, só de olhos, porque a máscara lhe tapava o rosto (estávamos num supermercado). Já não nos víamos há muito, julgo que desde o tempo anterior ao confinamento. “O que é feito de si, que há tanto tempo não o leio?”. Respondi que continuava a escrever, e que até estava a acabar um livro que me deu mais trabalho do que o esperado, mas tinha deixado de frequentar as redes anti-sociais, porque me cansei daqueles atoleiros e porque resolvi dar um descanso às minhas memórias de Araduca, que me tomavam muito do tempo que fazia falta para outras lidas. “Temos que pôr a conversa em dia”, disse-me, disse-lhe. Nesse dia voltei a cruzar-me com ela. Ia na companhia de António Magalhães (suponho que vinham de votar para a distrital do partido deles) e sorrimos perante a fartura de dois encontros no mesmo dia, depois de tanto tempo.

Longe estava eu de imaginar o motivo que me traria de volta aqui.

Não sou capaz de dizer quando conheci a Francisca Abreu. Sei que comecei a lidar com ela depois das eleições autárquicas de 1997, quando assumiu as funções de vereadora da cultura da Câmara Municipal de Guimarães. Por aqueles dias, eu pertencia à direção da Sociedade Martins Sarmento, presidida por Santos Simões. As relações entre aquela instituição e a Câmara, presidida por António Magalhães, eram cordiais e de colaboração institucional, embora muitas vezes tensas. A Sociedade, com o seu património riquíssimo, mas de manutenção muito dispendiosa, vivia em apertos financeiros crónicos. Da Câmara recebia a ajuda externa mais substancial, embora manifestamente insuficiente para as necessidades da instituição. A autarquia, por entender, com razão, que a Sociedade Martins Sarmento era uma instituição com uma dimensão que extravasava as fronteiras do Município, defendia que o Estado tinha a obrigação de assumir a sua quota-parte no financiamento das suas actividades de serviço público, culturais e de preservação de património. No entanto, do Estado, a SMS apenas obtinha promessas sucessivamente inconsequentes. Foi naquele contexto que comecei a trabalhar com a Francisca, mantendo relação franca e respeitosa, mas não isenta de momentos de conflito. É que, sendo a Francisca mulher de convicções fortes e de coração ao pé da boca, eu também não era de ouvir e calar. Portanto, não vou dizer que fomos amigos desde pequeninos, nem desde que nos conhecemos. No princípio, apesar do trato cordial, tínhamos muitas divergências em relação à coisa cultural vimaranense, já que eu entendia que a força cultural de Guimarães lhe vinha, principalmente, da acção do seu movimento associativo e acreditava que era necessário colocar um travão no processo de municipalização das actividades culturais que nasciam da iniciativa das instituições culturais vimaranenses, mas que acabavam por depender do apoio financeiro da Câmara para poderem subsistir, cuja independência era posta em causa à sombra da ideia de que ‘quem manda é quem paga’. Com o tempo, o respeito algo desconfiado inicial foi-se transformando numa amizade construída no trabalho em causas e projectos comuns e numa ideia partilhada: a de que, podendo não coincidir quanto aos meios mais adequados para lá chegarmos, tínhamos objectivos comuns e colocávamos o interesse da comunidade e das instituições que representávamos acima dos interesses particulares.

Ao longo do tempo, trabalhei com a Francisca Abreu em projectos e em comissões do município da área da cultura, em que participava umas vezes em representação a SMS, outras em nome próprio. O primeiro grande projecto comum foi o que esteve na origem da Casa de Sarmento — Centro de Estudos do Património, que agregava recursos e vontades da Universidade do Minho, da Câmara Municipal de Guimarães e da Sociedade Martins Sarmento, com o propósito de dotar Guimarães de uma Unidade Cultural da UM e de apoiar a actividade da Sociedade Martins Sarmento. O projecto, germinou a partir da iniciativa de Carlos Bernardo, à altura vice-reitor da Universidade do Minho e responsável pelo Campus de Azurém, depois de um 9 de Março, em que escutou as preocupações de Santos Simões com a sustentabilidade da SMS. No dia seguinte, quando me dirigia para as instalações Núcleo de Estudos de População e Sociedade da UM, onde estava integrado como investigador, vi um carro parar e sair dele o vice-reitor, que me abordou para dizer que tínhamos que conversar. Tinha compreendido as queixas de Santos Simões e estava disponível para ajudar a encontrar uma solução para a SMS. Na conversa, que teve lugar num dos dias seguinte, a hora inusitadamente matinal para encontros de trabalho, começou a desenhar-se o projecto que viria a consumar-se na primeira unidade cultural da UM em Guimarães. Foi com esse projecto que comecei a trabalhar  mais de perto com a Francisca, que ali era o rosto da Câmara Municipal de Guimarães.

Naqueles dias, o gabinete de Carlos Bernardo na Escola de Engenharia serviu de incubadora projectos que iriam mudar Guimarães, com contributos fundamentais de um jovem que, não tardaria muito, seria o primeiro reitor da UM com todo o seu percurso académico feito dentro da instituição, António Cunha (que, em boa hora, a actual Câmara Municipal chamou para ajudar a pensar e a desenhar a cidade do futuro), o vereador Júlio Mendes e o meu amigo José Nobre, em representação da Câmara. Foi ali que se começaram a esboçar os projectos que iríamos baptizar como a Casa da Memória, cuja ideia original nasceu de uma visita de Carlos Bernardo à Casa da Cultura de Paraty, no Brasil; do Campurbis, um inovador complexo cultural, artístico e de ensino avançado que ocuparia o quarteirão de Couros, com núcleos em diferentes unidades industriais desactivadas, que incluiria outro projecto muito acarinhado por Carlos Bernardo, um centro internacional de artes dedicado ao pintor José de Guimarães (esta era a ideia original para uma plataforma das artes e da criatividade). No âmbito do desenho destes projectos, eu e o José Nobre fomos a Paraty, levados pelo Carlos Bernardo, para tentar perceber in loco o conceito que o entusiasmara. Algum tempo depois, já com a companhia da Francisca Abreu, fomos visitar a colecção de arte primitiva-moderna de José de Guimarães, que iria constituir o núcleo expositivo permanente do centro cujo projecto estava esboçado. E saímos de lá esmagados pela qualidade e a dimensão da colecção do pintor e a quase certeza de que um tal projecto era incomportável, porque, como perguntava a Francisca, onde é que se ia arranjar um espaço com tamanho suficiente e o dinheiro necessário para uma obra com tal dimensão? As ideias da Casa da Memória, do Campurbis e do Centro Internacional de Arte José de Guimarães ficaram guardadas numa gaveta da Câmara, à espera de melhores dias, que sabíamos que dificilmente viriam.

Entretanto, em Março de 2005, Isabel Pires de Lima tomou posse como ministra da Cultura. Finalmente, no Ministério estava alguém a quem não seria necessário explicar o que era a Sociedade Martins Sarmento. Iniciaram-se contactos exploratórios e, ainda nesse ano, a direcção da Sociedade foi recebida no Palácio da Ajuda, de onde regressou com uma sigla então na moda e que não tardaria a perder o lustro. O que Isabel Pires de Lima sugeriu como solução seria a criação de uma PPP, envolvendo o Estado, a Câmara de Guimarães e a Universidade do Minho, como parceiros públicos, e a SMS, como parceira privada. No fundo, era uma versão melhorada e acrescentada da Casa de Sarmento. Nos meses que se seguiram, trabalhou-se na preparação dos projectos de protocolo e de estatutos do que viria a ser a Fundação Martins Sarmento, tarefa em que estiveram directamente envolvidos Rogério de Azevedo, jurista do Ministério da Cultura, José Nobre, em representação da vereadora da Cultura, o gabinete jurídico da UM e a direcção da SMS. O anúncio público esteve previsto para o dia 7 de Outubro de 2006, mas teve que ser adiado, porque naquele dia de Conselho de Ministros em Guimarães haveria uma notícia mais importante para dar.

Naquele final da manhã de sábado, Francisca Abreu chorou, na conferência de imprensa que se seguiu ao Conselho de Ministros que aconteceu no Palácio de Vila Flor. Chorou de alegria, porque se anunciava que Guimarães ia ser Capital Europeia da Cultura em 2012. Foram as primeiras das muitas lágrimas que haveria de verter, primeiro de tristeza e de impotência, depois, outra vez, de alegria pela feliz consumação de um evento único que tinha sido tirado a ferros.

Estávamos a cinco anos e três meses de 2012. Parecia muito tempo, mas era pouco, uma vez que Guimarães não tinha absolutamente nada pensado para um evento daquela dimensão, que ninguém até então ninguém adivinhara que poderia acontecer. Nenhum projecto, nenhum programa, nenhum esboço. Mas a gaveta da Câmara guardava ideias que assentavam como luvas na necessidade de projectar obras estruturantes para uma Capital Europeia da Cultura: o Campurbis, a Casa da Memória, o centro de artes dedicado a José de Guimarães, projectos que foram imediatamente anunciados pelo presidente da Câmara. Afinal, os dias melhores por que esperaram engavetados sempre iriam chegar.

Era o tempo de avançar. Foi criado um Grupo de Missão, formado por Elisa Babo e Paula Aleixo, em representação do Ministério da Cultura, e pelos vereadores Francisca Abreu e Júlio Mendes, em representação da autarquia. Personalidades muito distintas e aparentemente dificilmente compatíveis, os dois vereadores, uma vocacionada para a concepção e gestão do acto cultural, outro com inegável competência a pensar e gerir obra física, tinham perfis que se completavam, constituindo uma equipa que gisou um projecto equilibrado para 2012.

Mas o processo não andava como era suposto. E a crise que eclodiu em 2008 começou a bater forte, a ponto de, a certa altura, ter havido quem questionasse se não seria preferível desistir. Muitos desesperavam, ninguém desistiu, mas perdeu-se tempo.

Faltava encontrar o modelo de gestão e de programação para a Capital da Cultura, assim como faltava algo que era urgente e imperativo encontrar: uma liderança e uma equipa. Durante meses que chegaram a anos, andamos entretidos a discutir o perfil de um comissário para a CEC. Muitos nomes foram lançados para a mesa, mas sempre foi consensual a ideia de que a missão deveria caber a uma personalidade da cultura. Passaram quase três anos até que se anunciou o nome para o lugar. Surpresa total: em vez de uma liderança com inquestionável dimensão cultural, assessorada por pessoas de cultura com grande experiência em programação cultural e técnicos bem identificados com as complexas burocracias dos processos de candidatura a financiamentos, iríamos ter como primeira figura uma técnica com competências na gestão de projectos de financiamento europeus, cujo nome, muitos de nós, ouvimos então pela primeira vez, assessorada por gente da cultura. Era a cultura que se submetia à simples contabilidade. Não faltou quem torcesse o nariz à solução encontrada, mas também houve quem a acolhesse com entusiasmo e quem lhe desse o benefício da dúvida, até porque o tempo urgia, impondo-se a necessidade de agilizar os processos de financiamento.

O modelo de gestão iria ser uma fundação, que tinha presidente, sem sequer ter estatutos. Estes demoraram um mês e foram um fato feito à medida, que não acautelou os interesses nem da Câmara, nem do Ministério. Francisca Abreu percebeu-o logo, assim como na Sociedade Martins Sarmento percebemos, no dia em que nos foram mostrados. Pelo que se concluiu, a presidente designada teve carta-branca para os encomendar, tendo sido redigidos de modo a blindarem a sua posição. Curiosamente, o advogado que cobrou umas ‘módicas’ dezenas de milhares de euros para os confeccionar à medida e a gosto (quando a Câmara tinha quem os fizesse, sem mais custos dos que os que eram correntes, e com mais competência na protecção do interesse municipal), com cláusulas lesivas do interesse público, viria a ser presenteado pela mesma Câmara com dois ajustes directos, ambos exactamente com igual valor, que terminava em 999, a fazer lembrar os preços de enganar incautos com que muitas lojas tabelam os artigos que vendem.

Tudo aquilo custava a compreender, mas confiava-se que o problema seria só de compreensão e que logo seríamos confrontados com o mérito da solução encontrada, que punha na liderança de um evento cultural único alguém que estava a milhas de distância da densidade do homem de cultura que é João Serra, ou da experiência de gestão de projectos culturais de Francisca Abreu, que viriam a integrar o Conselho de Administração a que presidia. Pela parte dos da SMS, o benefício da dúvida começou a esmorecer logo ao primeiro contacto mais próximo, na sede da instituição. Afinal, começávamos a perceber, não havia necessidade em ir buscar fora quem se fazia pagar a peso de ouro, sem que acrescentasse valor, nem competência, uma vez que a Câmara Municipal de Guimarães tinha, nos seus quadros, profissionais bem mais experientes e competentes na gestão e organização de projectos culturais e na comunicação.

No tocante à comunicação, uma escolha desastrosa logo virou piada. Uma directora de comunicação, caída sabe-se lá de onde, de quem, reparo agora, esqueci o nome (vá-se lá saber porquê, só me lembro de um par de botas), não tardou a ir parar ao pior sítio onde alguém pode ter a má dita de cair, o anedotário local. O reportório era acrescentado quase todos os dias. Um vez, telefonou para a SMS a pedir para falar com um membro da direção. Estava a preparar uma nota de imprensa sobre o primeiro grande evento pré-CEC (seria a primeira conferência de Eduardo Lourenço em Guimarães) e precisava de saber em que rua ficava a sede da instituição. A resposta que recebeu esteve na origem do rótulo de malcriados que logo colaram à gente da Sociedade. Mesmo assim, não acertou na morada: no dia seguinte, os jornais nacionais anunciavam que o Prof. Eduardo Lourenço ia proferir uma conferência na rua Dr. Avelino da Silva Guimarães. De outra vez, conta-se que andava à procura do número do ‘fax’ da muralha, para lhe pedir autorização para lá afixar qualquer coisa (eventualmente confundindo a muralha de D. Dinis com a Associação Muralha). E assim por diante…

Aqueles dias, e os que se seguiram, por demasiado tempo, foram os mais penosos da vida política de Francisca Abreu, que acompanhava o caminho para o desastre com desesperada impotência. Calava o desencanto e o desalento, mas, tantas vezes, não conseguia suster as lágrimas.

As gentes de Guimarães não seriam aquilo que são se baixassem os braços ao verem transformar-se em pesadelo um dos seus sonhos mais bonitos. Guimarães ergueu-se e deu uma lição de cidadania comparável a outras que estão inscritas na sua história.

O processo foi longo, doloroso, desgastante. Aquela era uma luta que se travava com todos os verbos, menos um: desistir, apesar de alguns terem começado a deitar a toalha ao chão ou a fazer pontaria aos próprios pés.

A partir de certa altura, o ambiente estava completamente inquinado. Não faltava quem quisesse bater com a porta, por concluir que não havia solução. Outros que os seguravam, porque percebiam que haveria solução, apenas temiam que chegasse demasiado tarde.

As reuniões do Conselho Geral da Fundação eram cada vez mais tensas. A certa altura, já não era possível calar a sensação de estarmos a caminhar para o abismo. Lembro em particular uma reunião no Campus de Azurém que, ao terminar, se julgava ter sido decisiva, mas que não o foi. Teve direito a intervalo e a almoço improvisado sem se sair da sala (lá fora, os jornalistas esperavam por notícias). As críticas ao processo e à imagem que se estava a projectar de Guimarães na imprensa nacional foram tão assertivas que, no intervalo para a refeição, o reitor da Universidade, António Cunha, me sussurrou: “tu és um incendiário”. Não era. Aliás, visto a esta distância, o nosso papel ali era mais o dos bombeiros. Confesso que o que mais me incomodava naquelas reuniões eram os que assistiam sem direito à palavra. E, mais do que qualquer um, a Francisca, que estava sentada à minha frente, forçada a calar o coração que, como já disse e bem sabem todos os que a conheceram, o tinha ao pé da boca.

O inevitável aconteceu num Conselho Geral realizado no Paço dos Duques, para o qual todos fomos avisados pelo presidente do Conselho Geral, Jorge Sampaio: devíamos suspender todos os nossos compromissos, porque a reunião só terminaria quando fosse colocada uma pedra sobre o assunto. Assim foi. Dos mais de cinco anos que tivemos para preparar a CEC, já só sobravam cinco Ainda iríamos a tempo?

Com a saída da presidente do Conselho de Administração da Fundação Cidade de Guimarães, houve que encontrar uma solução que seria necessariamente de ruptura e de continuidade. Havia que romper com a inércia acumulada, mas, como não era possível fazer o tempo recuar, tinha que se dar continuidade o trabalho que já estava feito pelos programadores.

Naquela altura, já todos sabiam que 2012 não ia ser aquilo com que Guimarães tinha sonhado. Mas também sabiam que não iria ser o desastre que chegou a estar anunciado. A CEC2012 foi um caso exemplar de envolvimento dos cidadãos num imenso projecto colectivo. Todos fizemos parte. E só temos que ter orgulho pelo que aconteceu em Guimarães em 2012.

Aqui, devo confessar que, para aqueles que, como eu, alimentaram expectativas que 2012 iria ser um momento de viragem para as instituições culturais da cidade, o resultado foi frustrante. A reposição da ordem natural das coisas chegou tarde.

No caso da instituição onde eu tinha responsabilidades, o saldo de 2012 foi praticamente nulo, o que constituiu um sério problema, uma vez que a instituição se tinha dimensionado para o que estava comprometido e não se cumpriu (não do lado da programação, mas do lado das obras físicas). Pode-se dizer que a Sociedade Martins Sarmento deu mais à CEC do que aquilo que recebeu.

Desde o início do Verão de 2004, eu estava no exercício de funções de presidente da direção da SMS, que nunca desejei, mas para onde fui empurrado por circunstâncias dolorosas. Quando Santos Simões faleceu, ainda estava em curso uma das grandes obras que fechavam a profunda renovação que vinha operando na instituição desde o início da década de 1990, a casa de acolhimento da Citânia de Briteiros. Os seus mandatos tinham sido, para mim, um processo de aprendizagem permanente, mas foram especialmente desgastantes para quem tinha que lidar com a crónica carência de meios para fazer frente às necessidades da instituição. O edifício da sede tinha começado, literalmente, a desabar: caiu o tecto do salão nobre, caiu o tecto da sala de leitura da biblioteca. Houve necessidade de criar espaços de trabalho, nas duas salas que ladeiam o átrio de entrada do edifício. Avançou-se com o projecto do Museu da Cultura Castreja e, logo a seguir, com a construção da nova casa de acolhimento da Citânia. Estes projectos foram sustentados com o esgotamento dos recursos próprios da instituição, com alguns apoios, muita imaginação e muita fé em promessas que se esqueciam com a mesma velocidade com que se faziam. Lembro-me que havia mesmo um deputado que, quando se discutia o orçamento de Estado, apresentava sucessivamente uma proposta de apoio que seria a solução para os problemas da instituição. Proposta que esqueceu no dia em que o seu partido deixou a oposição e assumiu o governo.

As receitas próprias, os apoios que recebia (que quase se reduziam ao subsídio da Câmara) e os financiamentos que alcançava com o resultado de candidaturas a financiamento europeu eram manifestamente insuficientes para cobrirem os custos com os projectos em andamento e com o dia-a-dia da instituição. Mas todos sabíamos que, com Santos Simões, acabaria por ser encontrada uma solução, como sempre tinha acontecido. Só que a morte, que já antes tinha fintado, levou-o sem que lhe dar tempo para consolidar a estabilidade financeira da SMS, que nunca a tivera, e que era o seu grande projecto para a instituição, depois de a dotar com infra-estruturas modernas.

Com a casa endividada, mas com a obra feita, os que cá ficaram assumiram a missão de honrar a memória de Santos Simões e completar o seu projecto para a SMS. Com entusiasmo, imaginação e muitas noites mal-dormidas, por volta de 2009 a Sociedade Martins Sarmento completava o ciclo iniciado com as direcções de Santos Simões, com as obras feitas e as dívidas quase saldadas, com as perspectivas abertas pela Fundação Martins Sarmento e os projectos da CEC que beneficiavam a SMS, a instituição parecia ter assegurada a sustentabilidade que se procurava. Pela parte que me tocava, sentia que estava cumprida a tarefa a que me tinha proposto e que era tempo de dar lugar a outros e ir à minha vida. Quando anunciei a minha intenção de não em candidatar a novo mandato, a Francisca Abreu teve uma reacção que me tocou: “Não pode sair agora, porque vamos precisar de si. Não é tempo de mudar as pessoas numa instituição com a importância da SMS para a Capital Europeia da Cultura.”

Portugal vivia então, como hoje, um tempo de democracia consolidada, mas com fragilidades que teimam em não se resolver. Uma delas tem a ver com a percepção de muitos de que a intervenção política é, antes de serviço público, uma carreira ou uma passagem breve para ganhar balanço (influência, cumplicidades, carteira de contactos, perspectivas de negócios futuros — algumas vezes, não tão futuros assim). Tal percepção faz com que a primeira obra de muitos dos nossos políticos seja a de arrasarem a obra daqueles que os antecederam nos cargos que ocupam, como se o mundo tivesse começado no dia em que eles nasceram. Assim aconteceu com o sucessor de Isabel Pires de Lima no MC, que tomou posse logo a seguir à publicação dos estatutos da Fundação Martins Sarmento. À publicação, iria seguir-se a negociação da sua execução, a começar pela parte mais relevante: a do financiamento por parte do Estado, já que a Câmara tinha assumido o princípio de acompanhar, com igual valor, o que fosse decidido com o Ministério. A mudança no Ministério trouxe uma alteração no relacionamento do Ministério com a SMS, que já não era tratada, como dantes, como parceiro, mas como uma estrutura dependente. E não houve nenhum avanço quanto à comparticipação do Estado na Fundação, o que, além do mais, condicionava o apoio do Município. Na cerimónia de 9 de Março, a direção da SMS tornou pública a situação. A seguir, recebeu uma transferência do Ministério de valor que não era mais que uma fracção do que se esperava — que, se tivesse sido acompanhado pelo Município, implicaria uma drástica redução do subsídio que a autarquia concedia à Sociedade antes da criação da Fundação — e a manifestação da intenção do ministro visitar a instituição, para a conhecer. Não conheceu nada. Numa breve reunião com a direcção, deu conta, em modo de ralhete quase polido, do seu desagrado por a SMS ter tornado pública a situação em que estava e deixou claro que, não sendo os estatutos da Fundação obra sua, também não eram seus os compromissos que estariam assumidos. Ou seja, foi à sede as Sociedade Martins Sarmento, não para a conhecer, mas para mostrar quem mandava. Naquele dia, morreu a Fundação Martins Sarmento, porque quem manda naquela casa são os seus sócios. É que aquela instituição sempre viveu com dificuldades económicas, mas nunca prescindiu da sua autonomia face aos poderes políticos, porque a independência está na sua matriz.

Este era um projecto que Francisca Abreu, que integrou o seu Conselho de Administração, acarinhou.

A saída de Júlio Mendes da vereação teve o mesmo efeito. Nele a SMS encontrou alguém que, perante os problemas, ajudava a encontrar soluções. E a solução para a SMS seria a requalificação e modernização do Museu e uma ligação directa à futura Casa da Memória, cuja concepção e gestão seria entregue à Sociedade, com os meios financeiros necessários, e a que ficaria afecta parte dos quadros que a instituição vinha a preparar, com a CEC2012 no horizonte. Mais uma vez, a mudança de responsável, desta vez na vereação municipal, foi acompanhada pelo rasgar de compromissos anteriormente assumidos. Na primeira reunião que tivemos com a vereadora que assumiu as funções que antes pertenceram a Júlio Mendes, percebemos que os projectos estruturantes para a Sociedade que constavam da candidatura de Guimarães a Capital Europeia da Cultura estavam mortos e enterrados.

Francisca Abreu fazia parte de um género de políticos que se vão tornando raros: os dos que exercem o exercício de cargos políticos com a generosidade de quem se empenha na causa pública, sem preocupações de gestão de carreira e sem cuidar dos seus interesses pessoais.

O mandato autárquico que coincidiu com a Capital Europeia da Cultura, seria o último de um presidente de Câmara carismático, dotado de uma inteligência política incomum, que sabia ouvir e sabia dizer não, mas que, quando dizia sim, era sim. Sob a sua liderança, que durou mais de duas décadas, Guimarães passou por uma transformação profunda, que consolidaram o caminho que conduziu à qualificação do Centro Histórico como Património Mundial e à designação de Guimarães para Capital Europeia da Cultura em 2012. Francisca Abreu esteve nesses dois momentos únicos da história da cidade. O papel que desempenhou na CEC posicionavam-na entre os candidatos naturais à sucessão de António Magalhães. Mas para isso seria necessário trabalhar para conquistar a federação de sindicatos de votos em que o seu partido, a nível local e regional, se foi transformando. Como essa modalidade de trabalho político não se quadrava com a sua personalidade, passou ao lado do destino que muitos lhe anteviam: o de ser a primeira mulher a presidir à Câmara Municipal de Guimarães. O último mandato de António Magalhães também foi o último de Francisca Abreu.

Ao longo dos anos de convívio e de envolvimento em projectos comuns, fomos sedimentando uma relação de amizade, assente na franqueza e no respeito mútuo. Das conversas que fomos mantendo ao longo dos últimos anos, percebi muito desencanto e alguma desilusão com pessoas que lhe foram próximas, que atribuo ao seu afastamento precoce da actividade política executiva, em que acumulara todo um cabedal de conhecimento e de experiência que, digo-o eu, estava a ser manifestamente desperdiçado. Mas não será essa imagem amargurada que irei guardar da Francisca Abreu, preferindo-lhe a memória do seu sorriso aberto e contagiante.

Francisca Abreu não era aquilo que pode parecer ter sido, quando se lêem os votos de condolências que têm sido tornados públicos. Quando uma pessoa com pensamento próprio se torna consensual, é sinal de que já não se conta entre os vivos. Não sei se deixou escritas as suas memórias, por onde passaria a história de mais de duas décadas da história da nossa cidade. Mas quem é que perde tempo a escrever memórias, quando ainda tem, como a Francisca tinha, tantos anos pela frente para continuar a acumulá-las?

Já várias vezes falei a um amigo da urgência em recolher os testemunhos de pessoas que viveram por dentro os acontecimentos irrepetíveis dos dias da pré-história e da história do tempo em que Guimarães foi capital cultural da Europa. Qualquer dia, argumentava eu, iam começar a desaparecer alguns dos seus protagonistas, por não ser verdade a frase feita que afirma que a vida não pára. A da Francisca parou demasiado cedo. Tão cedo, que custa a acreditar na sua partida súbita e inesperada.

Vai-nos fazer falta.

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