As rondas, por Alfredo Guimarães

A ronda: partindo da aldeia.

Tendemos a identificar o património de Guimarães com os seus monumentos, as suas ruas e praças, as suas paisagens históricas, mas aquilo que Guimarães tem de melhor, de mais precioso e de mais genuíno é a sua gente, enquanto entidade colectiva dotada de um carácter e de uma identidade que são só suas e que sempre se reflectiu no modo como se mobiliza para as suas realizações comunitárias. Um modo de ser único que vem ao de cima no modo como vive velhas tradições, onde, não raras vezes, envolve o fervor cristão com práticas duma religiosidade popular que remete para ritos pagãos ancestrais, como aqueles que Alfredo Guimarães, escritor regionalista, evoca no texto que agora reproduzimos, inicialmente publicado em 1909, na revista Ilustração Portuguesa: as rondas.

As rondas
São uma grande família as celebrações de religiosidade popular no Minho. Agora me recordo eu de quatro, as mais vulgarizadas: os cercos, os caramões, os ladários e as rondas. Tudo isto gente da mesma costela; sangue do mesmo sangue — uma família.
Os cercos da antiga tradição eram festividades de pronunciada tristeza e gravidade. Antecedendo a padiola rasa do orago, caminhavam os arcabuzeiros de aldeia, de bacamarte aperrado, desfechando sobre os milheirais, os campos de centeio ou de vinha, para afastar o mal das culturas. Esta cerimónia resumia-se em percorrer lentamente a área de cada paróquia, parecendo., assim, que em todas as freguesias dos grandes e pequenos concelhos do Norte se realizava a mesma costumeira supersticiosa.
Julgo vir dessas celebrações a denominação, aos bacamartes, de bacamartes de cerco.
A aldfádega.
Os caramões modificaram o uso do limite de circunscrição paroquial dos antigos cercos. Não se resumem ao cerco de uma freguesia; caminham através terras de muitas denominações; através regências paroquiais muito várias. Vão a “santuários” distantes. Parecendo que com esta prova evolutiva (digamos assim) se quis obstar à inumerabilidade de dias gastos em cercos diferentes, em diferentes abstinências de trabalho agrícola.
Depois, os caramões são motivo de menores despesas para os paroquianos e juntas de paróquia. Com essa usança dos cercos nunca se poderá indicar a quantidade de pólvora e fulminantes gastos na cintura de uma aldeia de muitos fogos. Calculo-o eu por três vezes um defeso para as lebres, para os coelhos, para as sombrias, para as codornizes, perdizes e pardejos bravos. Creio não estar muito longe.
O centeio é que o pagava!...

Os ladários são uma festa dos inícios de Maio, que possuem uma longa legenda tradicional. Quem fala em ladários evoca simultaneamente, pela sua temporada. uma festividade religiosa e pagã: evoca o culto católico das ladainhas e a celebração publica das maias.
Os ladários são a reza, a dentro de cada templo, da ladainha dos santos, entoada em coro, deitada do altar-mor pelos párocos de três freguesias circunvizinhas. Ao ar livre documenta-se a festa rústica. E os sinos que cantam do alto dos campanários por essas manhãs de um sol viçoso e forte unem na mesma impressão as cantilenas do templo e os pâmpanos de adorno nas casas de ofício.
Os operários que engrinaldam as portadas e janelas da oficina com os ramos frondosos de carvalho, as flores alvadias da giesta e as rosas fartas de palmeirão, têm, em verdade, o mesmo sentimento religioso das velhas que passam ao ladário, cobrindo sob o lenço de linho, afunilado, o seu capote de pano azul com longa romeira de veludilho.
As rondas: entrando na romaria.
Para eles o significado é o mesmo...
Só para mim isso e diverso — e bem diverso. Trazem do passado os pâmpanos enlaçados nas varandas curiosas dos burgos, o sinal sugestivo da sua origem inconfundível; o selo bem nítido do seu renome; a expressão provocante do seu intuito! Não são para um deus dogmático, personificação integra do mistério, causa de um pensamento constante de submissão e medo. Não são para esse culto essas flores. Antes para um deus humanamente sentido e esperado, e agindo para o sentimento e pensamento dos homens como a fonte da Alegria, o elogio da Força, a incontinência do Amor! Deus, cuja abundância de generosidade e dentro nós ou a nossos olhos, como a água azul e farta que serpeia por searas banhadas de um sol esparso e rútilo!
Apólo!
Louvado Apólo nosso pai natural!
E sob a evocação máxima do deus luminoso, quantos símbolos surgem nesse despontar de Primavera, entre a natureza já adornada de ramos?! Ceres, toucada com ouro luzente dos milheirais, rósea, de olhos perturbantes, mostrando a abundância dos seios novos e gordos: Baco, deus-bode, coroado de folhagem estilizada das vinhas, de peruca e patas de cabra; Diana, flexível, bela, ágil. voltando para as ravinas monstruosas a ferocidade animal da sua matilha.
E quantos, ainda...
Dentro dos templos, então, na frescura e tranquilidade dessas suaves manhas de Maio, o coro religioso evoca uma outra alma palpitante, menos remota e quiçá menos sagrada. Pesam sobre ela crimes d’ura sacrifício constante, já ancestral. que tem vinculado nas gerações sucessivas de vinte séculos o medo ao riso, ao amor carnal, à força, ao direito de viver independentemente. Para a sentimentalidade de velhos talvez que a celebração seja causa de uma saudade. Razão secundária. Ela no fundo é (e de longa data) a velha luta entre o cristianismo e o paganismo: luta inquebrantável; conflito com que brigam, desde um longínquo período histórico, as forças naturais, o instinto, e a crise de incerteza que profundamente envolveu a alma humana: — crise a que devemos chamar superstição ou infantilidade mental.
*
E as rondas?!
Evoco-as em Julho, no mês apolíneo, quando a prodigalidade da natureza enche de cor e murmúrio os lindos campos da terra minhota. Evoco-as ao livre reflexo de um sol radiante, viva e alvoroçantes, levando o ruído do seu espectáculo rural atra vez uma paisagem verde e farta, já animada para a mais espontânea das produções.
A ronda: a caminho da romaria.
É o azul tímido das madrugadas que vê partirem de longínquas aldeias, os “votos ingénuos da sentimentalidade e alegria populares. Quantos andores, de ronda e romagem para uma freguesia apartada, se armam no adro de uma igreja do campo quando ainda estremece sobre o anjo custódio da garimpa da torre aquela estrela de esmalte frio, incerta mas devotada, criança no azul da sua tremura insistente, a que o camponês amorosamente chama a “estrela Maria, o “lume de alva”!... A essa hora, afadigados e rápidos, com a vaidade do seu trabalho devoto e tradicional, os mesários e os do andor, em mangas de camisa alvadia, erguem as asas marginais, colocam a estrela do remate e as primeiras uvas do ano, aspirando a azulada frescura da manhã e ouvindo os gaios que cantam nas carvalheiras das quintas próximas.
Quando o andor se completa, quando de cima abaixo tudo se incorpora e reluz gravidade e luxo, então garridam os sinos, os tambores arrebatam de entusiasmo, e o fogueteiro, apressado, petisca fogo no dos morteiros.
Nada sobre o arvoredo quieto da manhãzinhas uma onda de frescura aromática, que coalha na cor das vegetações pingues o verde sombrio das grandes orvalhadas. Entre o mato betoiro. na encosta próxima, — mato espigado de flor, num amarelo quente — enredam-se as teias de aranha miúdas e rendadas, que indicam um meio-dia abrasador, do sol perturbante. Nos longes da montanha — porque a luz assoma, apenas — uma neblina vaga, de um violeta ténue, envolve e apaga as minuciosidades distantes da feitoria e edificações da terra avistada.
E o andor sobe aos ombros hercúleos dos rapazes do campo. Ordenando os movimentos dessa mole de decorações e graça gritam os mesários as suas palavras de cuidado, as suas ordens de descanso ou arrancada. Cavadores rijos ajustam, de face, o cordeame que equilibra as partes altas da armação. E já os bombos, às primeiras passadas, troam, dianteiros, a algazarra anunciadora da ronda paroquial.
A ronda da Senhora da Lapinha em Guimarães.
Como animadas, as folhagens esguias e unidas dos choupos de à beira-rio estremecem de aragem, risonhamente doiradas do sol nascente.
A ronda segue. Para trás cantam ainda os sinos da igreja, com pena de não rondarem também como o andor e como o povo, que vão levados. Lá adiante a filarmónica de aldeia, posta no extremo da arraiada, compassa o “ordinário lento do uso.
Um rapazio garoto, com a cabeça enrodilhada nos lenços vermelhos “de Rio Mouro”, segue na frente erguendo os mastros de pinho da terra, onde as bandeiras brancas se desenrolam e elevam, fartas de liberdade e aragem. É um cordão de mastrário, desigual de atitudes, que põe certa nota original e garrida no desfile dessas festas camponesas. E na frente do andor, em torno, e após o grupo filarmónico, uma nuvem de povo, com fato domingueiro, com a jaqueta arrimada, o oiro pendente. o grande guarda-sol descoberto e de chapelão empunhado, segue a passo a sua ronda, com filáucias de rondeiro brioso.
Já o sol abre francamente sobre a poeira clara das estradas; já bate de chapa no vermelho cru das casas de senhorio, pinceladas de fresco para a temporada estival!
E então, entre a graça e espessura das vinhas de enforcado, que, trepadoras e abundantes, bordam a margem do caminho. curiosamente o andor, com seus gomos de cores fortes, onde se intercalam o azul, o escarlate e amarelo mais nítidos, e onde constantes reflexos de papéis luminosos criam uma gama vibrante, cáustico — o andor, dizia, dá o sugestivo conjunto de uma decoração exuberante de vida, caracteristicamente galega, e colhida, talvez, na filarmonia ardente dos vestuários rurais, na maravilha da ourivesaria popular, no próprio azul opalino do céu — tão firme ele se abre sobre a luz impressiva da solheira farta!
Mordomos, de opa vermelha e vara de prata, clamam entre o povo as esmolas orçamentadas para a ronda. A poeira eleva-se, numa restolhada quente e pesada, envolvendo a multidão caminhante. Os moços do andor, resistentes, afogueiam-se de suor devoto e animal!
*
Sobre as rondas minhotas (que são o último filho dos velhos cercos rurais) muita curiosidade me aparece neste meu livro de notas.
Os guiões.
Rondas ao S. Tiago, que (no dizer do camponês) “pinta o bago”, enfarta o fruto roxo das vinhas. Rondas à Senhora da Lapinha ou Senhora de Antime[1] que afastam as pestes da aldeia, o “mal” das culturas, que enriquecem as colheitas dos inícios de Outono. Rondas sem fim, originadas por uma necessidade moral, que é, simultaneamente, uma necessidade económica.
Aldeias há onde se reúnem andores rondeiros de muitas freguesias[2]. A par da origem religiosa que fomentou esta ultima étape das festividades do campo — postas em prática com um sentido mais ou menos prático — não devemos esquecer que na desmedida altitude dos andores, na aglomeração de mastrárias flamantes, de músicas, etc., etc., colabora, absolutamente, o habito de exageros que o minhoto impulsivo comunica a todas as suas manifestações públicas.
Esse excesso de vegetado e, quase direi, de fartura produtiva, crescendo quase que exclusivamente ao seu esforço, alguma coisa havia de vincular no carácter de um povo que vive da sua activa e pródiga comunidade.
Não é, agora, com a restrita intenção dos ingénuos cercos de há cem anos que se exibem as pomposas romagens das rondas, por esses alegres lagares do sul do Minho. O alicerce desse costume regional é, sem dúvida, o mesmo. Mas já a ronda popular, posta primariamente ao serviço do culto católico, tomou depois o seu ar de manifestação paga, para o que contribuiu (e contribuirá) a profusão do carácter e estado social quase infantis deste povo inquieto e meglomata.
Numa quadra próspera como a do estio, em que a abundância dos pomares, das searas, das vinhas, e a abundância de águas — cantam através o caminho dos regatos — fácil era concluir que a par da exaltação já ancestral do cavador minhoto o tempo e a terra requeriam expansões de extremada atitude. com as quais vão os gastos pródigos e as canseiras não medidas.
Como nota sentimental (dominante do carácter de todos os indivíduos impulsivos) as rondas terminam por uma “despedida”[3] pitoresca e amorosa de sensibilidade: são os andores arreados do ombro dos moços do campo, no peso todo da sua ornamentação arcaica e bizarra, que lentamente se inclinam, se “despedem»; gesto este tão comovente para o minhoto tradicionalista que todos o acompanham com uma frase irmã da sua saudade:
— Até ao ano!... Até ao ano!...
As despedidas das rondas.
Póvoa de Varzim, 1909.
Alfredo Guimarães.




[1] Estas Rondas realizam-se nos arredores de Guimarães e Fafe.
[2] Freguesia de Santa marinha da Costa, em Guimarães.
[3] Freguesia de Santa Marinha da Costa, em Guimarães.

Ilustração Portuguesa, n.º 189, 4 de Outubro de 1909, pp. 26-31

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