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Vizela. |
A primeira estação do itinerário do escritor Ramalho Ortigão pelos
estabelecimentos termais portugueses, que reportou na sua obra Banhos de caldas e águas minerais, publicada
em 1875, situava-se no concelho de Guimarães: Caldas de Vizela. No seu texto,
Ramalho recorda a primeira vez que pisara aquele “vale
ameníssimo”, dezoito anos antes:
Era no princípio de Junho. Cantavam os rouxinóis nas balseiras. Das elevações da serra descobria-se a imensa paisagem que se desenrola até o mar, banhada pelo luar que batia as casinholas brancas do santuário do Bom Jesus, atufadas entre as grandes massas escuras do arvoredo. Ouvia-se o gemer dos pinhais e das carvalheiras com um murmúrio solene e monótono como o das vagas, cortado a espaços pelo tilintar dos chocalhos de uma récua de machos que ia ao longe guiada por uns almocreves; e de quando em quando um coelho surpreendido e assustado atravessava com dois pulos, por diante de nós, o carreiro dos viandantes.
No seu texto, Ramalho fala da terra, “muito
interessante para os estudos arqueológicos”, das gentes de Vizela e dos que lá
iam a banhos. Descreve a paisagem e os
vestígios de outras eras, em especial da presença dos romanos, atraídos pelas
águas cálidas que dão nome à localidade. A certa altura, refere-se à furna de
Lijó (ou Lujó), que um dia foi classificada como Monumento Nacional, com a
designação de Anta de Polvoreira, que anta nunca foi.
Aqui fica, na íntegra, a memória de Ramalho Ortigão
sobre as Caldas de Vizela.
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Vizela. Hotel Cruzeiro do Sul. |
Caldas de Vizela
A freguesia de Vizela está situada a cerca de 5 quilómetros da cidade de Guimarães, no coração do Minho. É um vale
ameníssimo, coberto de vegetação, ensombrado de carvalhos e de castanheiros,
rodeado de campos de milho enquadrados em renques de árvores de que pendem as
vinhas, banhado pelas águas do rio Vizela, que atravessa a povoação. Na margem
direita fica a Lameira, a parte mais povoada; na margem esquerda está situado o
Mourisco. Uma ponte de pedra comunica as duas margens.
O que escreve estas linhas recorda-se, ao traçá-las,
da primeira manhã que passou nestas caldas há dezoito
anos.
Chegara na véspera, de noite, a cavalo numa mula, embrulhado no seu capote de jornada, com uma clavina no
arção do selim ao longo de uma das bolsas do alforge, conforme o uso de todos os que nesse tempo viajavam no Minho. Tinha atravessado, guiado por um
almocreve, a serra da Falperra, cortada de fundos barrocais em que a água dos
veios que corriam chapinhava contra os estribos de pau; e as madressilvas
suspensas em grossos festões dos valados musgosos envolviam os caminhantes.
Era no princípio de
Junho. Cantavam os rouxinóis nas balseiras. Das elevações da serra descobria-se
a imensa paisagem que se
desenrola até o mar, banhada pelo luar que batia as casinholas brancas do
santuário do Bom Jesus, atufadas entre as grandes massas escuras do arvoredo. Ouvia-se o gemer dos pinhais e das carvalheiras com um murmúrio
solene e monótono como o das vagas, cortado a espaços pelo tilintar dos
chocalhos de uma récua de machos que ia ao longe guiada por uns almocreves; e
de quando em quando um coelho surpreendido e assustado atravessava com dois
pulos, por diante de nós, o carreiro dos viandantes.
Fui apear-me ao Mourisco, numa pequena casa de um andar, com a sua varanda de pau corrida sob um
alpendre e suspensa em esteios de pedra, que ficava em um pequeno alto, ao
desembocar da ponte, para o lado da Cascalheira, sobranceira à margem do rio.
Ao outro dia acordei
às seis horas e abri a minha janela. Num cercado feito em volta da casa com
ripes de pinho, canas e silvas com amoras, os galos espenejavam-se e cantavam ao sol; os coelhos brancos gesticulavam
avidamente ao pé de um braçado de couves, ou fugiam às guinadas. Em baixo, a
dez metros de distância, passava o rio entre choupos e castanheiros. No meio do
rio havia um moinho, redondo, vestido de musgo e de heras, coberto com um
telhado de colmo enegrecido, com grandes pedras
pousadas em cima. A água caía no açude com um estrépito diligente e alegre, e a
roda da azenha, gotejando, girava lentamente na sombra húmida.
Defronte, na colina oposta, sobre a outra margem,
elevava-se a pequena igreja de S. Miguel das Aves, com o
seu campanário caiado de branco, tendo ao lado as casas da residência paroquial.
À varanda da casa, que deitava para o passal, estava a
essa hora o reitor, um velho de oitenta anos, magro, cabelos brancos saindo do
seu barrete de retrós e caindo-lhe de cada lado do rosto e sobre a gola da sua
longa bata desabotoada; calção curto, meia de lã preta. Ao lado dele uma rapariga de
dezoito anos, com um longo colarinho redundo, de folhos, um lenço amarelo de
grandes ramagens carmesins encruzado no peito e atado na cinta, as tranças
enroladas na nuca dentro de um lenço escarlate, amarrado segundo a graciosa
moda do sítio, deixando descoberto o alto da cabeça e pendendo numa ponta sobre as costas.
Ela tinha no braço um
cabaz e deitava mancheias de milho ou dava-o a comer na sua própria
mão ou na mão do padre a toda a espécie de aves adejando no ar ou pousadas na varanda e no beiral do telhado. Eram
galinhas, rolas, pombos, pardais, e uma grande arara, presidindo a tudo,
pousada no ombro do padre.
A rapariga de quando em quando metia milhos na boca, e
deitava a cabeça para traz. Então alguns pombos mais estimados, de leque, iam dar-lhe bicadas nos dentes.
Ao pé da minha casa um homem, vestido de saragoça, com
grossos sapatos, com o chapéu deitado para traz, a transpirar, descansava cora um pé no degrau da escada exterior, tendo ura
côvado na mão e pousado no joelho o seu fardo constante de peças de pano, um cobertor de papa com barra azul e uma caixa de pinho chata e quadrada, em que os bufarinheiros trazem as agulhas,
as linhas, as rendas, os lenços finos de cambraia e a colecção dos
sabonetes.
Não eram grandes os divertimentos que a terra
proporcionava então ao banhista e ao viajante. Em honra da verdade devo mesmo
acrescentar que esses divertimentos eram nenhuns. Cada um inventava para seu
próprio uso os meios de se entreter. Havia a conversação na botica, no barbeiro, na loja do Bento
da ponte, e ao pé dos banhos, debaixo do alpendre. E nada mais.
Mas faziam-se partidas de pesca no rio, à linha ou com
o mingacho, uma rede semelhante aos camaroeiros, da mesma forma das que se
usara para caçar os insectos.
Como a estação se prolonga desde o meado do mês de
Maio até o fim de Outubro, caçava-se do mês de Agosto em diante, às codornizes
nos restolhos, e às perdizes e às lebres nas serras adjacentes.
Depois havia os passeios à Cascalheira, as digressões a Braga, a Guimarães, a Fafe, as
romagens ao Bom Jesus do Monte, os picnics, as burricadas.
A localidade, é, além disso, muito interessante para os estudos arqueológicos. Algumas piscinas
conservam ainda relíquias de mosaico, fragmentos de antigas obras de mármore,
do tempo da dominação romana. Em escavações empreendidas nestas paragens, não só no próprio circuito dos banhos, mas nas suas
redondezas, acham-se toros de colunas,
capitéis, argamassas, tijolarias, lápides com inscrições, moedas e medalhas.
Estas são romanas ou celtibéricas; das segundas possui um exemplar primoroso o ilustre académico Pereira Caldas, professor do liceu nacional de Braga; as
primeiras são do tempo de Tibério. Entre as lápides encontradas em Vizela há
uma de Tito Flávio Arquelau,
legado augustal na Lusitânia nos anos 81 a 90 depois de Cristo, no reinado do
imperador Dauriciano, edificador em Roma de umas termas famosas. Esta lápide,
com a configuração de cimalha de pórtico, acha-se recolhida na quinta de Aldão, do concelho de Guimarães, e tem a seguinte inscrição:
…………………
DEDICAVT
T. FLAVIVS. ARCHELAVS
CLAUDIANVS
LEG. AVG.
Outra lápide com inscrição foi encontrada no Mourisco em 1841, e
conserva-se hoje no quintal da snr.a D. Maria da Costa, junto da
ponte Velha do Vizela, na margem esquerda deste rio.
Há ainda na quinta do Paço, em S. João das Caldas, uma lápide votiva ao deus Bormanico como a que existe na
propriedade da snr.a D. Maria da Costa. A lápide que se acha na
quinta do Cirne, segundo diz o snr. Emílio Hübner, ou na quinta do Paço,
segundo nos informa o digno professor snr. Pereira Caldas, tem a inscrição seguinte:
C. POMPEIVS
GAL.
CATVRO
NIS. F (il), (r) e (et)
VGENVS. VX
SAMENSIS
DEO. BORMA
NICO. V. S. L. M
QVISQVIS. HO
NOREM. AGI
TAS. ITA. TE. TVA
GLORIA. SERVET
PRAECIPIAS
PVERO. NE
LINAT. HVNC
LAPIDEM
São dignas ainda da atenção dos antiquários uma furna
que existe no monte de Lijó e uma antiga capelinha, situada no monte da Santa,
freguesia de Santo Adrião. Defronte desta capela, na freguesia
de Tagilde, na margem direita do Vizela, fica o lugarejo da Arriconha, onde
nasceu S. Gonçalo de Amarante.
Além de muitas casas mobiladas, que se alugam por
preços dependentes dos cómodos que oferecem, há em
Vizela dois bons hotéis: o conhecido pela designação de Hotel
do Padre, o mais próximo dos banhos da Lameira, e o Hotel
do Cruzeiro do Sul, casa situada em lugar muito pitoresco e construída
expressamente para o fim a que se destina.
Numa e noutra destas hospedarias o serviço
é de mesa redonda e o preço de quarto e comida é de 1$000 réis diários por cada hóspede.
Obtêm-se facilmente carruagens por preços aproximados
aos de Lisboa e Porto.
Nos estudos das principais
águas minerais do reino, feitos oficialmente pelo snr. Agostinho Vicente
Lourenço, lêem-se a respeito das águas das Caldas de Vizela as seguintes
linhas:
Estas águas, que apresentam temperaturas muito
diferentes, têm composição química análoga; são sulfurosas, pouco mineralizadas
e tendo em dissolução pequenas quantidades dos elementos das rochas vulcânicas,
em cujo seio brotam.
Examinamos três destas águas, a do Mourisco, a da
Lameira e a do Médico.
A água do Mourisco tem de temperatura
36°5C, e deixa pela evaporação e aquecimento do resíduo solido a
180°, 0gr,331 por 1.000 gramas de água. Este resíduo é
principalmente formado de silicatos e cloretos alcalinos, assim como de
pequenas quantidades de sais calcários e magnesianos. Contém 0gr,00862 de ácido sulfídrico.
A água da Lameira está situada a pequena distância da precedente, e tem
de temperatura 32°,5C. 1.000 gramas de água contêm 0gr
00913 de acido sulfídrico, e igual quantidade deixa pela evaporação 0gr,3415
de resíduo sólido, composto dos mesmos sais que o precedente.
A água do Medico está situada nas vizinhanças das águas já descritas e
apresenta propriedades físicas e composição química análogas. Tem de
temperatura 37°,5C e 0gr,00987 de ácido sulfídrico por 1.000
gramas de água. A evaporação de igual quantidade de água deixa 0gr,3475
de resíduo sólido, formado na maior parte de silicatos e cloretos alcalinos, e
alguns sais calcários e magnesianos.
A água, observada no Inverno (Novembro) pelo distinto geólogo Schiappa de Azevedo, marcava às duas horas da tarde, na bica da
Lameira, 60° centígrados, sendo a temperatura do ar à sombra 19°,5, com o tempo
sereno.
No dia imediato ao desta observação, 17 do referido
mês, a temperatura da água no banho do Médico era de 37°,5, sendo a do ar
exterior de 18°,5.
No mesmo dia, com tempo nublado e seco, sendo a
temperatura do ambiente 19°,5 centígrados à sombra e às duas horas da tarde, o
termómetro indicava 38o,8 na água da nascente do Mourisco.
Nas demais nascentes as temperaturas variam
extremamente desde 17°,2 até 65°,5.
O produto total das águas, depois dos trabalhos de
captagem feitos pelo snr. Dejante, monta a 327.000 litros em vinte e quatro
horas, havendo várias nascentes que não se exploraram por haver já o volume de
água que se reputa suficiente para as necessidades do público.
O terreno em que brotam as águas de Vizela faz parte
da grande zona de granito porfiróide que abrange o centro da província do
Minho.
De todas as caldas do reino as mais quentes, depois
das de S. Pedro do Sul em que se
encontra o máximo valor termométrico, são as das Caldas de Vizela, de cujo uso
os reumáticos tiram um incomparável partido.
É arriscado usar de águas cujas nascentes não estejam
averiguadas e cuja composição não tenha sido analisada pela química. Há pouco
tempo ainda muitas pessoas que padeciam do estômago bebiam em Vizela a água de
certa bica celebrada na localidade pelas altas virtudes gástricas que muitas
pessoas lhe atribuíam. Procurada ultimamente a nascente desse veio, reconheceu-se que ele era formado pelo esgoto da água servida nas
tinas da Lameira. Aviso aos incautos, para que a recordação do mais nojento
desastre não venha um dia a aliar-se nas suas carteiras de banhistas com outras
lembranças mais ternas!
Ramalho Ortigão, Banhos de caldas e águas minerais, Livraria Universal, Porto, 1875,
pp. 27-32
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