Guimarães, por Alexandre Herculano (I)



Se olharmos agora para Guimarães no estado actual, veremos que, desfrutando a primazia de ser uma das maiores vilas da sua província, porque é povoada por mais de oito mil almas, logra os merecidos créditos de ser a mais industriosa.
Alexandre Herculano, 1840
Em Setembro de 1840, a revista O panorama: jornal literário e instrutivo da Sociedade Propagadora dos Conhecimentos Úteis, que teve Alexandre Herculano como director, publicou dois artigos dedicados a Guimarães, ilustrados como uma gravura que retrata o Padrão da Oliveira, que reproduz uma litografia editada em 1839 na obra Scenery of Portugal and Spain, de George Vivian, gravada por Pereira Coelho. Os textos não estão assinados mas, por uma referência a um outro artigo que saíra uns meses antes na mesma revista, que aqui publicámos recentemente (Mais um brado a favor dos monumentos), percebe-se que é do próprio Alexandre Herculano.
A gravura causa uma estranheza que já explicamos antes (lá voltaremos). O texto é um documento que vale a pena ser lido com atrenção.
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Guimarães.

 1.°
Berço da monarquia e primeira corte de Portugal, foi a famosa vila de Guimarães, ilustre por estes gloriosos títulos, e sempre importante pela activa indústria, que a tem feito opulenta. Está situada numa veiga fértil e aprazível entre os dois rios Ave e Vizela, a três léguas ao nascente de Braga, de cujo arcebispado depende pelo que toca à jurisdição espiritual; nos seus arredores há muitas e deliciosas quintas. 
Querem alguns que seja esta vila o assento da cidade de Araduca, de que Ptolomeu faz menção; é, porém, incerta a conjectura. Mas no meio de várias hipóteses, ninguém poderá disputar-lhe veneranda antiguidade, porque os reis de Leão a tomaram aos mouros, o que prova que já por esses tempos ora terra de alguma consideração. Pode bem ser que fosse possuída por algum senhor godo, chamado Vimarano, e que deste lhe viesse o nome. Todavia é necessário distinguir a Guimarães antiga da moderna Guimarães. Afirma o P.e Carvalho que a primeira fundaram os galo-celtas, quinhentos anos antes da era cristã, em sítio mui alto entre os dois rios acima mencionados: e a erecção da nova vila é geralmente atribuída à condessa Mumadona, tia de D. Ramiro, o 2.°, de Leão, e viúva de Hermenegildo, conde de Tui e do Porto, e governador da província de Entre-Douro-e-Minho, a qual, possuidora duma grande quinta e outros senhorios em Guimarães, aí fundara um mosteiro, onde se recolhesse por morte de sou marido. E porque nesses tempos era trivial habitarem no mesmo edifício, ainda que formando conventos distintos, os monges e freiras, antes que S. Gregório Papa, e depois dele, especialmente na Galiza e Portugal, Pascal 2.°, vedassem semelhante abuso e escândalo, foi o mosteiro de Mumadona destinado para religiosos tanto dum como do outro sexo. Quando, porém, o conde D. Henrique, ilustre progenitor dos nossos monarcas, assentou a sua corte em Guimarães, já o convento era exclusivamente de frades da Ordem beneditina.
Foi esta casa religiosa o núcleo da moderna povoação; e querendo a condessa Mumadona preservar a sua fundação, e os cristãos vizinhos, dos ataques e invasões dos mouros, mandou edificar um castelo sobre forte penedia no alto da vila velha, entre o norte e o nascente, ficando no meio uma torre antiga fechada, à entrada da qual numa pedra estavam esculpidas as palavras via-maris, caminho do mar, de que alguns, talvez com pouco fundamento, quiseram deduzir o nome alatinado de Guimarães, vimaranes; sendo mais provável que esta palavra seja de origem goda. Dentro deste castelo, que existe de pé, ainda se notam vestígios dos paços do conde D. Henrique; assim como permanece o paço do 1.° duque de Bragança, que o fez construir com solidez e magnificência; e actualmente está convertido em quartel militar.
Quando D. Afonso 6.° de Castela casou sua filha, D. Teresa, com o conde D. Henrique, deu-lhe em dote as terras que em Portugal estavam isentas do poder mauritano, em que entrou Guimarães, e assim todas as mais que pudesse ganhar aos bárbaros. O conde estabeleceu em Guimarães a sua corte, e mandou criar tribunais e arquivos donde se recolheram papéis interessantes sobre negócios particulares e da monarquia, os quais foram depois trasladados para Lisboa para o Tombo por mandado de el-rei D. Manuel em provisão que passou aos 13 de Maio de 1511. Nos paços reais da velha Guimarães nasceu o poderoso D. Afonso Henriques, que foi baptizado na igreja paroquial de S. Miguel pelo arcebispo de Braga S. Geraldo na pia que depois, para maior veneração e memória dos vindouros, foi trasladada para a insigne e real colegiada de N. S. da Oliveira, de que em outro artigo trataremos. Os monarcas portugueses honraram sempre com numerosos e especiais privilégios esta nobre vila; D. Dinis começou a guarnecê-la de muros; obra que D. Afonso 4.°, seu filho, completou, acrescentando-lhe D. João 1.° as torres que melhoraram a defesa.
Se olharmos agora para Guimarães no estado actual, veremos que, desfrutando a primazia de ser uma das maiores vilas da sua província, porque é povoada por mais de oito mil almas, logra os merecidos créditos de ser a mais industriosa. O seu aspecto e agradável, a sua posição excelente, os seus arrabaldes abundantes e recreativos. Para darmos ideia da actividade que desenvolve nas manufacturas em que se distinguiu sempre, aproveitaremos as notícias estatísticas da Geografia do Sr. Urcullu, que obteve a tal respeito seguras informações locais. Há na vila uma rua que é uma continuada fábrica de curtumes; tem menos de 200 tanques para este mister; e produz anualmente este ramo acima de 32:000 couros no valor de cem contos de réis; além do que nos arredores há fabricas da mesma manipulação que produzem a importância de 50 contos anuais proximamente. Há vinte anos que esta indústria tem duplicado à vista do que dantes era; mas por outro lado o comércio das linhas, panos de linho e ferragens tem decaído depois do tratado de 1810 e da independência do Brasil: todavia ninguém ainda hoje negará o incontestável merecimento dos tecidos de linho adamascados, fabricados em Guimarães, que em duração e primor de obra por certo que não tem rival. A boa têmpera das peças de cutelaria, que nesta vila se manufacturam, atribuem alguns à excelência e propriedade das águas; mas se isto não é querer dar desconto ao bom trabalho dos operários, aqui teremos mais um privilégio do território onde é sita Guimarães. Calcula-se, pois, que os três últimos produtos industriais, que apontámos, não rendem mais de oitenta contos de réis por ano, expedidos tanto para o reino como para o Brasil. Os doces de frutas confeitados nesta vila, principalmente ameixa e figo, que se exportam em caixinhas, com muita especialidade para Inglaterra, são uma verdadeira tentação dos gulosos, que possuem a delicada crítica dos prazeres do paladar; e para nós, que não somos gulosos confirmados, são tidos e havidos pelos doces mais saborosos a par das estimadas laranjas confeitadas na ilha de S. Miguel: este objecto parecerá pouco importante, pois saibam os curiosos que no anuo de 1835 montou a seis contos de réis. A légua e meia da vila junto ao rio Vizela há duas boas fábricas de papel, cuja extracção, termo médio, se reputa em onze contos de réis: e a uma légua para o sul estão os afamados banhos conhecidos pelo nome de Caldas de Vizela, já frequentados em tempo dos romanos, que ali tinham levantado um templo à deusa Ceres: hoje pela eficácia de suas águas em várias moléstias são muito procurados por grande número de enfermos.
A estampa que precede este artigo representa o padrão colocado defronte da porta da real colegiada de N.ª S.ª da Oliveira; e consta ter sido erecto por D. Afonso 4.°; mas o P.e Carvalho que não dá o motivo, transcreve uma inscrição aberta em lâmina de bronze na hástea inferior da cruz, que diz que Pero Esteves, natural de Guimarães, mercador e morador em Lisboa, filho de Estêvão Garcia a mandara fazer em 1380 aos 8 dias do mês de Setembro. Verdade é que de levantar o padrão a inaugurar a cruz vai muita diferenças. O monumento, que existe ao presente, consta de quatro arcos que se levantam sobre outros tantos pedestais, e são de molduras muito bem lavradas, e no pano da parede de cada um dos arcos está um escudo de armas de D. Afonso 4.°, por onde claramente se vê que a obra se fizera por mandado deste nosso monarca. Dentro deste padrão, o que a estampa não deixa ver, está um cruzeiro de pedra no gosto gótico com o Senhor crucificado e outras imagens, e o pedestal da cruz é guarnecido do degraus à feição de escadas. — “Tinha antigamente uma grade de pau com que se fechava, e naquele tempo não havia serventia por dentro dele como hoje há. Tinha ao pé do cruzeiro, que dentro dele se pôs, uma pedra vazia por dentro, fechada com uma cobertura de ferro com um buraco, por onde os devotos e os romeiros ofertavam suas esmolas, as quais eram de repartição do Cabido, e rendiam tanto que sendo dos priores in solidum a igreja de S. Pedro de Azurém trocaram o rendimento dela dando-o ao Cabido pelo rendimento daquela pedra, cujo contrato se guarda no seu cartório; e como se acabou a devoção se acabou com ela o rendimento da pedra, que ainda hoje existe no mesmo lugar. —"
Toda a praça e cercada de casas de alpendrada sobre colunas de pedra, mostrando a nossa gravura só um simples esboço para designar que o contorno daquele terreiro é rodeado de edifícios, os quais estão muito bem conservados: entre norte e nascente a fecha a real colegiada, e da parte que fica entre poente e norte estão as casas da câmara e audiências, que são coroadas de ameias; e no alto de suas paredes tem dois escudos de armas reais entre duas esferas, que fazem frente para o padrão.

O Panorama, Vol. IV, 4º da 1ª Série, N.º 175, 5 de Setembro de 1840, p.281-282

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