Tipos vimaranenses: o jacobeu, o zoilo, o pires e o burro


O modo de ser vimaranense é um interessantíssimo caso de estudo, daqueles que apaixonam os académicos que não têm nada de mais útil para fazer. Não tem faltado quem, decalcando Eduardo Lourenço, discorra longamente sobre a pretensa hiperidentidade das gentes de Guimarães, assumindo a existência de um homo vimaranensis, ramo da espécie humana que haveria de enquadrar na taxonomia de Lineu, caso não habitasse somente na imaginação de eruditos entediados. Em boa verdade, tal espécie não existe, uma vez que em Guimarães, como em toda a parte, se encontram bem representados todos ramos do género humano.
Da natureza dos vimaranenses em geral já há muito que disse o que sabia. Hoje, por falta de mais que fazer, vamos falar de quatro subespécies que estão bem representadas no genótipo vimaranense, quatro filhos-de-algo: o jacobeu, o zoilo, o pires e o burro.
Para identificar o jacobeu, não é preciso mais do que usar o nariz: tresanda à naftalina com que tenta esconder o ranço que lhe preenche o vazio do espaço que vai de orelha a orelha. É a demonstração viva de que o conde de Buffon poderia ter certa razão quando falava da degenerescência dos animais, em geral, e do género humano, em particular. Vive mergulhado na memória dos feitos dos seus antepassados, de quem herdou o pedigree que exibe com soberba altaneira. Porém, por um daqueles acidentes genéticos que são menos incomuns do que o que se pode pensar, herdou a espinha dorsal dum helminto. Untuoso e amaneirado, é a figuração da hipocrisia. Com a mesma mão com que dá palmadinhas nas costas, empunha a faca que espeta nelas.
O jacobeu é a demonstração viva da existência do homem das duas caras. Ele anda por aí.
Já o zoilo, apesar de não poder invocar a filiação numa estirpe da nobreza pré-quatrocentista, dá-se ares de príncipe da Renascença. Na erudição, é um repentista. O seu saber é liofilizado e instantâneo, bastando acrescentar-lhe um pouco de água para que se sinta capaz de perorar com erudição e sapiência sobre qualquer matéria, desde o mistério da virgindade mariana à demonstração do teorema de Fermat, passando pela interpretação teleológica do ritual de acasalamento das tartarugas das ilhas Galápagos. Não se deixa enlear em contradições, sendo costume vê-lo sustentar, em sequência, qualquer argumento e o seu contrário. Há muito que traçou a linha da sua vida, recta e ascendente: aos 25 presidente de câmara, aos 35 primeiro-ministro, aos 45 presidente da república. Com a idade em que já vai, deveria estar a preparar-se para cumprir o seu destino principesco e renascentista: tomar para si a cátedra do Vaticano e, como Bórgia, vestir-se de púrpura e entronizar-se como o papa que ficaria conhecido para a posteridade como Alexandre IX. No entanto, de tanto fantasiar com o fano, a tiara e o báculo, ficou-se pelo avental. Em vez de papa, ainda acaba ajudante de cozinha.
Como a biografia teima em fintar-lhe os planos, passa a vida zangado. Se fosse capaz de ter amigos verdadeiros, já algum lhe teria explicado que a zanga dele é com a própria vida. É vê-lo por aí, ora só, ora com aliados de ocasião, a tentar espalhar a peçonha que há muito o corrói, disparando a sua caturrice em todas as direcções, procurando atingir os que não se curvam em reverências perante a magnificência postiça do seu intelecto. É, simplesmente, um zoilo.
O terceiro elemento deste quadro pitoresco presume ser uma amálgama de Vieira, de Herculano e de Saramago. Está visto: é escritor.
Coloca a pose distante e majestática que julga adequada a um aristocrata. Aos que o saúdam, permite que toquem a sua mão mortiça e fria. Olha com desprezo aqueles que lhe lembram as suas raízes rústicas. Dá-se ares de barão, deixando passar a ideia que o sangue que lhe corre nas veias é azul. Barão vermelho seria ele, por trautear, de vez em quando, as modinhas populares dos amanhãs cantantes, embora sinta que o seu ambiente natural é o dos salões bafientos  da velha direita vimaranense.
Como Herculano, retirou-se do mundo para a sua tebaida, e é de lá do fundo do seu Vale de Lobos que remete as encíclicas com que procura iluminar a plebe ignara. Por acreditar que a sua língua materna não é o português, mas sim uma variante muito particular do romanço, criou um idioma novilatino, com que escreve, usando de uma pena de pato. Pelo modo como junta as palavras para exprimir as ideias cuja compreensão só ele alcança, é capaz de acreditar que o velho padre Vieira reencarnou no seu corpo. Escritor tardio, pressente que o seu destino é ir mais longe do que Saramago. É por isso que, sendo homem de poucos discursos, vai ensaiando ao espelho a oração da sua vida, as palavras que dirá ao Mundo aquando da aceitação do Prémio Nobel da Literatura que lhe está destinado.
Ele sabe que não há, em todo o Universo, quem escreva como ele. Assim o sabem também todos aqueles que algum dia tiveram a desdita de tentar decifrar algum naco de prosa saído da sua pena patesca. O que ele não sabe, ao invés de todos que o tentaram ler, é que não sabe escrever.
Esta personagem, apesar dos seus devaneios de nobreza, é um pé-fresco que nunca deixou de ser pires.
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Entrementes, por esta altura, o outro, que só aparece neste enredo porque são necessários quatro para dançar a quadrilha, deve estar a levantar as orelhas felpudas e a perguntar, com a voz cavernosa dos entes zurradores:
"Então, e o burro?"

Glossário:

Jacobeu: Diz-se de ou partidário de um movimento religioso, dito jacobeia ou sigilismo, surgido no clero português durante o reinado de D. João V  (c. 1744) e que chegou a ter repercussões políticas combatidas pelo Marquês de Pombal (1699-1782); sigilista, beato, que ou quem é hipócrita, falso.
Zoilo: Crítico que, na sua mordacidade, revela inveja, incompetência ou aversão pessoal injustificada.
Pires: Pífio, barato, vulgar, de pouco valor, de mau gosto, mesquinho, ridículo,pretensioso.
Burro (o m.q. jumento):  designação comum a diversos mamíferos do gén. Equus, da fam. dos equídeos; asno.

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