Efeméride do dia: O Hino e os chapéus


3 de Setembro de 1911
No jardim houve outros tumultos no fim da execução da “Portuguesa”, por não se descobrirem todos os cavalheiros que por completo enchiam o jardim. Depois levantaram vivas ao Bernardino Machado, Afonso Costa, etc. O administrador procurou acalmar os ânimos, o que não pôde conseguir, pelo que foram mantidas duas prisões, sendo os presos conduzidos à esquadra no meio de uma escolta de soldados de cavalaria. As manifestações do regime prolongaram-se por muito tempo e estiveram eminentes vários conflitos, por a distinção que deram a essas lamentações.
(João Lopes de Faria, Efemérides Vimaranenses, manuscrito da Biblioteca da Sociedade Martins Sarmento, vol. III, p. 226 v.)

Quando se implantou a República, o que mais faltava em Guimarães, como em geral no Norte de Portugal, eram republicanos. Não é que os não houvesse, mas quase se podiam contar pelos dedos da mão. É certo que o novo regime atraiu mais gente para o envolvimento na coisa pública, mas o número dos cidadãos que se empenhavam na política continuava escasso. O que por aqui prevalecia, em especial no meio rural e nos arrabaldes da cidade, era a grande massa da gente humilde, laboriosa, iletrada e católica que, no tempo da Monarquia, era facilmente arrebanhada pelo caciquismo dominante e que, depois do 5 de Outubro, continuava desarmada perante os velhos e os novos senhores que dominavam a vida política local.
Logo após a instauração da República, a imagem que Guimarães transmitia para o exterior era a de território de monárquicos irredutíveis e insolentes, que não perdiam nenhuma oportunidade para desafiarem e afrontarem o novo poder. E uma das estratégias que utilizavam com maior eficácia, pela irritação que provocava nos republicanos, era a de ignorarem ostensivamente o novo hino nacional, sempre que era tocado em público. A primeira vez que encontrámos uma referência a estas manifestações de afronta ao símbolo da República aconteceu no Teatro D. Afonso Henriques, durante a exibição das Danças de S. Nicolau daquele ano, de que dá notícia o jornal republicano Alvorada, de 10 de Dezembro de 1910:

Péu! Péu!
Foi no teatro, terça-feira, quando o povo, de borla, assistia ao 3.º número das festas nicolinas — as danças dos estudantes.
Na exibição dos moços estudantes, final de acto, o grupo académico dançante cantava a plenos:
Às armas! Às armas!
Sobre a terra e sobre o mar!
Péu! Péu! gritaram da plateia. Péu! Péu!...
E alguns cidadãos não tiraram o chapéu, ou porque não achassem oportuno, ou porque não quisessem.
Cá fora, finda a exibição dos moços estudantes, jogam-se apartes, quentes, vermelhos, prestes a fundirem-se em tempestade.
Nossa opinião: Queríamos que todos se descobrissem... mas por vontade. Sem esta condição, que exemplo oferecemos, exigindo, e que espectáculo nos oferecem, obedecendo?
Ah! não interpretemos por tal maneira a liberdade que tanto amamos!
Alvorada, 10 de Dezembro de 1910

A recorrente desconsideração do hino nacional seria uma singularidade vimaranense, no que toca à contestação do novo regime pela reacção monárquica. No Verão de 1911 estas manifestações estiveram na origem de diversos incidentes, alguns de especial gravidade. Por essa altura, era costume a banda da Infantaria 20 animar os fins de tarde no coreto do Jardim Público, fechando os concertos com A Portuguesa. Havia sempre alguém que acirrava os ânimos, fazendo questão de se manter de chapéu enterrado na cabeça enquanto se ouvia o hino. Actos de criançolas, dizia o jornal republicano A Velha Guarda, na sua edição de 12 de Agosto de 1911:
São justamente esses criançolas que, para melhor patentearem a sua imbecilidade, costumam ir para o jardim público, quando lá toca a musica regimental, para se não descobrirem quando ouvem o hino nacional, mantendo-se numa atitude irritante de provocação que incomoda, indigna todos os que, naquele lugar, republicanos ou não republicanos, mas suficientemente bem educados ouvem com o devido respeito o hino da nação Portuguesa, que é, independentemente de partidos e paixões, o da nossa pátria.
No dia 6 daquele mês, domingo, realizara-se o cortejo evocativo do sétimo centenário do nascimento de Afonso Henriques, no qual participaram cerca de oitocentas crianças das escolas de Guimarães, que levavam pequenas bandeiras com as cores nacionais, acompanhadas pelos seus professores, que levavam ao peito laços com as cores da bandeira e que prepararam um carro alegórico alusivo à República. Durante o percurso, as crianças entoavam vários hinos, entre os quais o hino nacional.
O conjunto era dum bonito efeito e agradou muito… Mas… há sempre um mas, alguns imbecis que aí se pavoneiam de gravata azul e branca, que trazem por debaixo da lapela medalhinhas com o retrato do seu ex-reizito, por cujo regresso suspira ainda, confiados em que há-de voltar ainda numa manhã de nevoeiro, quiseram patentear bem publicamente a sua falta de educação ou antes a sua imbecilidade.
Nalgumas ruas por onde o cortejo passou tiveram aqueles figurões o mau gosto de se entreter a dirigir graçolas, por vezes insultuosas, aos professores e professoras que iam com os distintivos das cores nacionais. Houve também algumas senhoras (?) que praticaram essa malcriação.
Na rua 5 de Outubro, especialmente, quando as crianças regressavam ao “Proposto” onde lhes foi oferecido um lunch, uns três ou quatro cretinos que ali se encontravam, intrometeram-se com eles, dizendo-lhes que rasgassem aqueles trapos (referiam-se às bandeirinhas), que fizessem deles o uso que a decência nos obriga a calar e outras parvoíces do mesmo jaez.
Presenciamos estes factos com verdadeira indignação, sentindo nojo por tão reles criaturas que nem mesmo senhoras e até as próprias crianças respeitaram. Tudo isto é uma vergonha para Guimarães e o forasteiro que assistiu a estas cenas havia de duvidar se se encontrava numa terra civilizada ou num sertão africano.
Felizmente que a má criação partiu apenas de meia dúzia de imbecis com quem as pessoas de bem se não solidarizam. São insultadores de crianças e de senhoras e isso basta para os classificar e definir.
A Velha Guarda, 12 de Agosto de 1911
Para o dia seguinte, segunda-feira, 7 de Agosto, o programa das Festas Gualterianas previa um concerto no coreto pela Banda da Guarda nacional Republicana do Porto. Terminou, conforme o uso daqueles dias, com A Portuguesa, de Alfredo Keil. Um conhecido comerciante vimaranense, Alberto Martins Fernandes, seria preso, por não se ter descoberto enquanto a banda executava o hino nacional. Mas o mais grave ainda estava para acontecer.
Aquando das Festas Gualterianas de 1911, houve casas que se engalanaram com bandeirolas com as cores da monarquia (azul e branco). Segundo o jornal Alvorada, uma dessas casas, adornada acintosa e provocantemente, foi a dum industrial de curtumes, vendo-se ali talvez uma dúzia dessas bandeirolas além de mais um enfeite, azul e branco, que guarnecia um balcão da mesma. Na madrugada que se seguiu ao encerramento das festas, essas bandeiras foram derrubadas e destruídas. No domingo seguinte, voltou a haver música no coreto do jardim. No fim, soam os acordes do hino nacional. Em frente ao coreto, um indivíduo, em atitude considerada provocatória, manteve-se com o chapéu na cabeça. Foi segundo o Alvorada, a faísca que lavrou o incêndio... incêndio de ânimos que encheu de perturbações toda uma noite. Um cabo terá chamado a atenção do homem de chapéu, acabando esmurrado. Da rua de Couros, escutam-se brados e correrias. Ouvem-se sinos a tocar a rebate. Fala-se num bando armado com cacetes que se prepara para entrar na cidade, Entretanto aparecem as forças da autoridade.
No dia seguinte, poderá ler-se no Jornal de Notícias:
Mais de 300 indivíduos, artistas, da rua de Couros e lavradores da freguesia de Abação, armados de cacetes, levantaram vivas à monarquia, a D. Manuel e a Paiva Couceiro, ao mesmo tempo que soltavam morras à República, chegando os sinos de muitas torres a tocar a rebate, pelo que compareceram os bombeiros voluntários.
O sossego só foi reposto pelas 2 horas da madrugada. Anunciam-se prisões. Por um telegrama do Ministro do Interior, ficou-se a saber que o representante do poder central em Guimarães, o administrador do concelho, Guilhermino Alberto Rodrigues, fora exonerado, sendo substituído por um militar, o alferes de cavalaria Teodorico Pereira dos Santos. Pela mesma altura, chega a Guimarães José Maria de Sá Fernandes, juiz de instrução criminal do Porto, com a missão de investigar os acontecimentos. As forças da ordem seriam reforçadas por um corpo de Cavalaria, proveniente de Braga, onde estava em trânsito da fronteira para Tomas, composto por 50 homens.
Desde logo se forma a convicção de que os acontecimentos do dia 13 haviam sido orquestrados, envolvendo curtidores e surradores da rua de Couros e homens do campo da freguesia da Abação. No dia seguinte, sucederam-se as detenções de suspeitos de envolvimento nos incidentes.
Entretanto, a imprensa vimaranense dividia-se na apreciação dos factos conforme a orientação política de cada jornal. Os monárquicos, como O Comércio de Guimarães, desvalorizavam os acontecimentos. Os não conotados nem com o novo nem com o antigo regime apelavam à contenção e ao bom senso. Os dois jornais republicanos tinham, como em quase tudo o mais, opiniões divergentes: mais moderado o Alvorada, de A. L. de Carvalho, mais incendiária a Velha Guarda, de Mariano Felgueiras, onde, na edição do dia 19,  Alfredo Guimarães assinava um texto intitulado Canalha, onde zurzia nos caciques monárquicos e assumia uma posição se paternalismo e superioridade moral em relação ao povo humilde. Escrevia o articulista, a certa altura:
Não que essas manifestações combinadas entre meia dúzia de caciques minados de rancor e realizadas por uma horda de populares que, longe de saberem a quem aclamavam, tinha ainda sobre si a tristeza de uma absoluta inconsciência política — Não que essas manifestações, dizia, possam para nós, republicanos, significar de qualquer modo um perigo. O mal está na tradição reaccionária, e por isso mesmo ofensiva, que esta Guimarães, tão digna de melhor sorte e de melhores filhos, vai adquirindo; o perigo está nos interesses industriais, agravados dia a dia para certos e determinados rancorosos que o comércio de Lisboa vai destacando e “marcando”; o mal, enfim, está para esses mesmos operários — ontem uma canalha abjecta, hoje os nossos amigos — os quais, quando o serviço industrial paralisar, pela falta de venda, tendo sido os últimos na responsabilidade dos delitos cometidos, são os primeiros a arcarem com os seus pesados agravos.
Canalha seria uma explica várias vezes declinada naquela edição de A Velha Guarda:
A quem se devem os acontecimentos de domingo se não única e exclusivamente à canalha? Sabemos que esta obedeceu a um plano previamente estabelecido por alguns caciques que se conservam na sombra. Mas essa canalha de que eles se serviram se já alguma vez tivesse sentido um vislumbre que fosse de repressão, atrever-se-ia a obedecer como obedeceu, a esses três ou quatro caciques? Indubitavelmente que não, porque a canalha é, acima de tudo, covarde. De maneira que nada teria acontecido se tivesse havido um pouco mais de carinho por esta terra, se não existisse já o parti pris de a considerar, exclusivamente, um foco de talassas. Se aos administradores deste concelho tivessem sido dadas as instruções e força necessárias para esmagar a canalha não teríamos a lamentar as cenas ridículas que se deram no domingo passado e que constituem uma vergonha, não para a cidade de Guimarães, que repele com nojo qualquer solidariedade com esses arruaceiros abjectos, mas para quem tem deixado ao abandono e sem forças o povo laborioso e honrado desta terra.
Entretanto, o presidente da Câmara Municipal convoca uma reunião pública para a manhã do domingo seguinte, 20 de Agosto, para que todos tenham ensejo de demonstrar, solenemente, que repelem os desacatos sucedidos no domingo passado, e de afirmarem a sua solidariedade com o regime da República. Na sua edição do dia 26, A Velha Guarda iniciaria a publicação da lista dos que assinaram o documento de solidariedade com as instituições vigentes, anunciando que também iria dar notícia das entidades oficiais que não assinaram o auto acima transcrito, embora tivessem recebido o convite que lhes dirigiu a Câmara. Contam-se 228 assinaturas, em grande parte de titulares de cargos ou de empregos públicos. Houve ainda 23 pessoas ou colectividades que, não tendo assinado o documento, justificaram a sua falta, declarando a sua fidelidade à República. A lista dos que não assinaram apesar de para isso terem sido convidadas pela Câmara, e que assim solenemente protestam que não acatam o novo regime republicano incluía 32 pessoas e colectividades (Companhia dos Banhos de Vizela, Círculo Católico, Sociedade Martins Sarmento, Santa Casa da Misericórdia, Assembleia Vimaranense, Club de Caçadores, Ordens de S. Francisco, S. Domingos e Carmo).
Entretanto, uma reportagem na cadeia aos detidos por causa dos acontecimento do dia 13, informava que, dos 36 presos, 24 eram trabalhadores do campo e indica os nomes dos cabecilhas da conspiração: um tal Quinzinho de Linhares, Pinheiro, o Gaio, de Abação, e António Machado, Director de O Comércio de Guimarães. Quase no final da entrevista com os presos, o repórter confidenciava:
O resto da entrevista levamo-la na catequese e na sementeira das doutrinas republicanas, desfazendo naqueles cérebros embolados de superstições e medos, as patranhas idiotas dum “Quinzinho” — um criançola que chora aos interrogatórios do juiz — dum António Machado — um imbecilzote que há muito pede surras — dum “Gaio” — um rufião ordinário, e quejandos.
Alvorada, 31 de Agosto de 1911
No dia 31 de Agosto, repetem-se incidentes no jardim público. Um indivíduo recusara-se a tirar o chapéu enquanto a banda tocava o hino nacional, dando origem a uma desordem. Chamado o administrador o incidente seria sanado rapidamente.
O Comércio de Guimarães  do dia 5 de Setembro noticiava que no domingo último houve novamente outros tumultos no fim da execução do citado hino (note-se que O Comércio de Guimarães nunca nomeia o hino como hino nacional, referindo-se-lhe geralmente pelo seu título, A Portuguesa). Tais tumultos terminariam com um detido e uma manifestação de fervor republicano.
Sobre os incidentes do dia 3 de Setembro, escreveu-se na Alvorada:
O povo, justamente exasperado com estes incidentes que só têm servido para desacreditar a cidade lá fora, rompeu em aclamações entusiásticas à República e aos seus vultos em evidência, enquanto o preso, rodeado pelo povo, por praças e oficiais de cavalaria, por polícias, e acompanhado pelo próprio administrador do concelho, que logo acudiu, seguia para a administração do concelho, sempre por entre vivas à República, à Pátria, ao presidente da República, à República radical, a Afonso Costa e a Bernardino Machado, predominando estes últimos, acompanhados por gritos de “abaixo o encobridor dos talassas, os falsos republicanos e os traidores” que eram soltados com manifesta hostilidade à autoridade administrativa por gente mais ou menos ligada à Câmara e ao ex-administrador, e que em frente à administração do concelho fez uma manifestação de desagrado ao administrador, ovacionando o ex-administrador Guilhermino, a República radical e aqueles dois ex-ministros.
Mais do que de censura aos que provocaram estes incidentes, o articulista do Alvorada lança farpas ao vice-presidente da Câmara, Mariano Felgueiras, escrevendo, nomeadamente, que este, num dado momento, no Toural, berrava como um possesso aos nossos ouvidos com vivas e morras em que se revelava ódio e despeito, cremos que por havermos ovacionado o administrador do concelho e irmos atribuindo os tumultos a instigadores a quem ele talvez não fosse estranho.
No dia 6 de Setembro, o presidente da Câmara, Teixeira de Abreu, em substituição do administrador do concelho, ausente em Lisboa, fez publicar um edital em que pedia a todos os vimaranenses, sem distinção de política, se abstenham por completo de qualquer manifestação verbal durante aquele acto, para assim se evitar a alteração da ordem e sossego público, que nestes últimos tempos tão abalados têm sido. O pedido foi recebido de modo diferente pelos dois jornais republicanos de Guimarães
Escrevia A Velha Guarda:
Discordamos desta orientação. Os vivas não podem nem devem ser proibidos desde que não sejam subversivos. Não há lei que tal autorize. Também não concordamos em que vivas ou quaisquer outros gritos não subversivos possam alterar a ordem. Os aplausos às instituições dum país, por mais entusiásticos e veementes que sejam, são sempre louváveis e uma garantia segura de ordem e de paz.
Além de tudo isto, uma autoridade não tem que pedir. A autoridade manda, em virtude da lei, e quando esta a tal a não autorize cala-se, mas nunca pede.
Bem diversa seria a posição do Alvorada:
Concordamos que os vivas, subversivos ou não, agora que precisamos entrar na normalidade, não têm razão de ser; e os vivas não subversivos só devem admitir-se em casos de regozijo, ou para contrapor aos vivas subversivos. E no caso presente, circunscrito ao jardim público, achamos de boa política a abstenção de vivas sempre que, terminada a execução tranquila do hino nacional, nenhum grito subversivo venha perturbar essa tranquilidade, como sucedeu ainda na última quinta-feira.

O principal argumento dos que defendiam o direito dos cidadãos a descobriram a cabeça, ou não, quando o hino nacional se ouvia, era o de que a lei o não obrigava, pelo que ninguém podia ser forçado a fazer aquilo que a lei não mandava expressamente. Este argumento cairia por terra. No princípio de Outubro de 1911, informava que, por lei, era devida ao hino nacional a mesma solenidade que havia sido imposta em relação à bandeira nacional. Faltar ao respeito a esses símbolos nacionais dava direito a multa, prisão de três meses a um ano e, em caso de reincidência, a expulsão do país.

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