Efeméride do dia: Um virtuoso na abertura do Teatro Afonso Henriques

Francisco de Sá Noronha (retrato publicado no Ocidente, n.º 80, 1881)

12 de Agosto de 1855
Domingo.- Abertura do novo teatro D. Afonso Henriques. Subiu à cena “Os Dois Renegados”. O nosso exímio violinista Francisco de Sá Noronha tocou algumas composições suas nos intervalos, sendo aplaudido com indizível entusiasmo. Foram dignos de grandes elogios, pelo zelo e actividade que tinham desenvolvido nos preparativos deste teatro, o Visconde de Pindela e José Maria Dias Guimarães (?). Ontem, véspera, vieram do Porto bastantes pessoas para assistirem a esta abertura do teatro.
(João Lopes de Faria, Efemérides Vimaranenses, manuscrito da Biblioteca da Sociedade Martins Sarmento, vol. III, p. 140 v.)

Aquela que seria a principal sala de espectáculos de Guimarães durante quase um século, o Teatro D. Afonso Henriques, abriu as portas no dia 12 de Agosto de 1855, com a representação da peça Os dois renegados, de José da Silva Mendes Leal. No entanto, os aplausos mais entusiásticos da noite seriam dirigidos ao violinista Francisco de Sá Noronha. Acerca deste músico, hoje quase esquecido entre nós, tem-se discutido qual será a sua terra.
Algum tempo antes da inauguração do Afonso Henriques, em Maio daquele ano, Sá Noronha tinha estado em Guimarães, onde foi homenageado com um baile. Pela descrição que João Lopes de Faria extraiu do jornal A Concórdia, do Porto, se percebe a veneração que as gentes de Guimarães tinham pelo artista:

As principais famílias desta cidade deram um esplêndido baile "ao seu e nosso compatriota" Francisco de Sá Noronha. Apesar do mau tempo concorreram 300 cavalheiros e 65 senhoras, apresentando-se D. Maria José da Silva Costa com um alfinete broche em que luziam alguns diamantes de grande valor, um alfinete avaliado em 15 contos de réis, valor intrínseco; no colo, orelhas, fronte, etc., trazia uma porção de jóias que dele não desdiziam; em perto de 50 contos, houve quem estimasse os adereços; um mancebo dizia que apesar de ser de idade a portadora era a mulher, das que estavam no baile, que mais valia a pena de ser roubada. Foi oferecida ao insigne rabequista, depois de haver tocado umas variações sentimentais, uma rabeca de linha, primorosamente feita no Convento das freiras Dominicas. Numa das salas estava o retrato do Noronha, desenhado e colorido em 3 dias, pelo Nunes. Sobre o retrato estava colocada uma coroa de louro com o seguinte distintivo "Ao Génio". O baile acabou às 4 horas, sendo Noronha acompanhado até à sua pousada pela música de caçadores 7 e por grande número de cavalheiros: veio à janela agradecer os obséquios, de que era devedor, aos seus patrícios.

Segundo o Dicionário Biográfico de Músicos Portugueses, de Ernesto Vieira, Francisco era filho de um músico do exército, tendo em Viana do Castelo, onde o seu pai estava então aquartelado. Veio para Guimarães ainda recém-nascido. Aqui se criaria e aprenderia música com um mestre espanhol chamado Bruno. Desde cedo deu mostras de grande talento. Aos 15 anos ficou órfão. Sem meios de subsistência rumou ao Porto como seu violino, na esperança de encontrar trabalho num teatro. Em 1838 atravessou o Atlântico. Esteve vários anos no Brasil, deu concertos em vários países da América Latina e nos Estados Unidos. Já músico com créditos firmados regressou à Europa em 1850. Esteve em Londres, de onde passou para Lisboa. Nesse mesmo ano deu três concertos em Braga, onde foi muito aplaudido em apoteose, segundo Pereira Caldas.
No jornal Religião e Pátria encontrámos notícias acerca dos concertos que deu em 1864 no teatro que inaugurara. O primeiro concerto foi no dia 7 de Abril. O jornalista registou as suas impressões:

As doces melodias que Noronha extrai das cordas do seu violino são indescritíveis de maravilhosas, e se o seu génio surpreende pela precisa e perfeitíssima execução dos mais dificultosos trechos de música, a alma do espectador não se extasia nem arrouba menos pela dulcíssima expressão do belo de melodias que é preciso ouvir-lhe desferir para se sentir e compreender. Noronha entusiasma e maravilha, e é preciso vê-lo para se acreditar que ele extrai aqueles prodígios de harmonia dum simples instrumento de invenção e composição humana.
Religião e Pátria, 9 de Abril de 1864

No mesmo número do Religião e Pátria, foi publicado um anúncio para um segundo concerto a realizar no dia 10, que trazia um agradecimento do violinista e compositor:
O snr. Noronha aproveita igualmente esta ocasião para se despedir de todos os seus patrícios e amigos, dos quais se aparta com profundo sentimento de saudade, e para lhes agradecer todos os favores e obséquios com que o honraram durante a sua curta demora nesta cidade.
Na segunda metade da década de 1870 regressaria ao Brasil, em busca da fortuna que se lhe negava na pátria com tenacíssima insistência. No Primeiro de Janeiro, do Porto, escrever-se-ia:

A pátria, porém, conservava-se-lhe refractária. Recentemente ainda, o pobre maestro, encanecido no trabalho, avançado em anos, ferido no seu orgulho e nos seus interesses pelas surdas agressões da inveja e do egoísmo, teve de abandonar Portugal e foi pedir ao Brasil, em troca do valioso exercício das suas aptidões, os meios de subsistência que a pátria lhe recusava

Não regressaria a Portugal, vindo a falecer no Rio de Janeiro no dia 23 de Janeiro de 1881. A notícia da sua morte chegou a Guimarães quase um mês depois. Foi noticiada no dia 18 de Fevereiro pelo jornal Imparcial:

Se é sempre para nós missão dolorosa o ter de registar o passamento de algum cidadão prestante e notável, hoje, ao noticiar aos nossos leitores, que é morto Francisco de Sá Noronha, nosso compatriota, nosso amigo e distinto maestro, sentimos-nos sob a pressão de ingente e profundo sentimento.
As últimas notícias, recebidas das terras de Santa Cruz trouxeram-nos a infausta nova de que, em 23 de Janeiro pretérito, fora arrebatado pela morte esse nobre músico — Sá Noronha, que, filho dilecto desta cidade, a honrou sempre com os brilhos de um talento luminoso na ciência das harmonias.
O laureado artista, insigne maestro e distinto rabequista, foi sempre tanto mais apreciado, quanto é certo que, filho de pais pobres e condição humilde, ele deveu tudo que foi de notável e de grande a si só, aos seus esforços próprios, à sua vontade inquebrantável, inspirada pela mais decidida vocação para a música. a maior parte.
Não se podia ouvi-lo tocar sem se ficar, como em êxtase, tal era o mimo, a doçura das notas vibradas por ele no seu sonoroso violino.
Guimarães, que se orgulha de ser pátria de muitos homens conspícuos nas armas, nas letras e nas artes, registará o nome de Sá Noronha entre esses ilustres vimaranenses, que têm nome brilhante nos fastos da nossa história.
Sentimos profundamente a morte desse nosso tão ilustre conterrâneo, e desejamos que a terra lhe seja leve.
Imparcial, 18 de Fevereiro de 1881

No dia 21 de Fevereiro, celebrou-se na igreja dos Santos Passos uma missa de sufrágio pela alma do nosso ilustre patrício e laureado maestro Francisco de Sá Noronha. A iniciativa partiu da Filarmónica União, que tocou durante a celebração.
A vida e a obra de Francisco de Sá Noronha, foi evocada por aqueles dias na revista Ocidente, num texto assinado por Filipe do Amaral, onde se lê:

A sua vida é profundamente melancólica: um caminhar permanente para o ideal sem ter forças para o atingir, e uma luta com as necessidades físicas incessante para que não bastava o talento nem o trabalho.
No Porto, onde Sá do Noronha, em talvez, num grupo notável de artistas, a mais bem dotada organização de melodista, a sua vida não foi próspera, nem mesmo artisticamente, muito considerada.
Nas suas peças do rabeca e nos seus concertos públicos muitas vezes em que, tocava com as sedas soltas do arco, imitando vozes de máscaras e animais, sentia-se a necessidade do artista que, para e grande público, condescende em fazer-se, por momentos, arlequim.
Da sua infelicidade fica, como documento, uma lenda melancólica:
Por muita gente Sá Noronha era considerado como sendo o que os italianos chamam um gettator, isto é, um homem perseguido pela fatalidade e que a traz consigo a todos os sítios onde se estabelece, a todas as empresas a que se associa.
Mais de uma vez empresas de teatros que lhe admiravam o talento e lhe queriam aproveitar os serviços, deixaram de o fazer, abandonando-o em más circunstâncias, pelo temor supersticioso da sua má sina.
E assim acabou uma mas mais notáveis organizações musicais que Portugal tem produzido.
Filipe do Amaral.
O Ocidente, 4.º ano, Vol. IV, n.º 80, Lisboa, 11 de Março de 1881, p. 59

Francisco de Sá Noronha era um virtuoso do violino que fazia questão de apenas tocar as peças que compunha. Eram-lhe geralmente reconhecidos dotes de melodista, mas não faltava quem desdenhasse da sua falta de escola.
O autor da nota necrológica que foi publicada no Primeiro de Janeiro, concordando com o argumento da falta de solidez na sua formação musical (Sá Noronha, como tantos outros espíritos de eleição, tivera a desventura de nascer em Portugal, e tudo o que foi deveu-o exclusivamente a si, aos extraordinários recursos das suas faculdades, ao perseverante esforço da sua energia), discorda dos que desprezavam os méritos do violinista e compositor:

De resto, a música de Sá Noronha, com o seu carácter belliniano, suavemente melancólico, é um espelho nitidíssimo de todas estas qualidades. Os pechosos, os gramaticões da arte, poderão notar-lhe, neste e naquele ponto uns tantos descuidos de factura, análogos àqueles que nos “Lusíadas” se deparavam a Agostinho de Macedo, incapaz de compreender a grandiosidade genial do poema, e de vibrar ao valente sopro da inspiração que o agita; mas o que ninguém lhe poderá negar, sob pena de incorrer numa injustiça manifesta, é um talento poderoso, abundante, delicado, fortemente impressivo.
As suas melodias calam intimamente na alma, e a plenitude, a vasta largueza que as caracterizam acusam uma vigorosa organização musical. Nem hesitamos em avançar que Sá Noronha, com uma educação artística mais completa, poderia ombrear dignamente com muitos dos famigerados maestros estrangeiros.

Ainda aqui voltaremos a falar de Francisco de Sá Noronha.

Quanto à questão de qual seja a sua terra, a resposta é simples. Francisco de Sá Noronha é um vimaranense que nasceu em Viana.

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3 Comentários

Miguel Salazar disse…
António,
Julgo que o nome de Francisco de Sá Noronha não integrava aquela lista que o António elaborou sobre Ilustres Vimaranenses.
Fê-lo por algum motivo especial ou apenas porque não seria possível metê-los todos?
Abraço,
Miguel Salazar
Miguel,
Boa pergunta. Não era possível metê-los todos, é verdade, e aquela lista é uma escolha, subjectiva, seguramente. Onde cabiam 40 não podiam caber 400. Mas confesso que não foi essa a razão. Na altura, conhecia mal esta figura e tendia a dá-la como o encontrava, ou seja, como vianense (http://pt.wikipedia.org/wiki/S%C3%A1_Noronha). Entretanto, aprendi um pouco mais e não tenho dúvidas, como o próprio não tinha, em afirmá-lo como vimaranense.
Um abraço
António
Uma versão sobre a sua origem é de que terá sido fruto das relações de uma dama da nobreza local com um padre. Quando nasceu, terá sido dado a criar a um casal que o adoptou como filho (para despiste social). Ele próprio não conhecia com exactidão as suas origens.
Abraço
Eduardo