Depois de Sá Noronha apresentar Joaquim de Vasconcelos a Camilo, em Seide contaram-se as colheres de prata

Joaquim de Vasconcelos

Em Julho de 1870, o maestro Francisco de Sá Noronha, célebre violinista, apresentou a Camilo Castelo Branco, na sua casa de Seide, Joaquim de Vasconcelos, seu amigo de grande talento, notável teorista musical, educado em Alemanha, e literato de muitas esperanças. Em 1874, Camilo falaria da visita que lhe fizeram o violinista e o futuro consorte de Carolina Michaëlis, e recorda aquele dia tão literário, tão cheio de palavras, de sistemas, em fim, de mútuas promessas, que me faziam esperar daquele moço alguma coisa menos cruel que um inimigo. Aqui fica o texto de Camilo:

ACERCA DE JOAQUIM 2.º
(RESPOSTA A UMA CARTA)
A carta, a que respondo, veio do Porto. E o período respondido reza assim:
..... Asseveram-me que o teu Plutarco, anunciado na ACTUALIDADE, é o Joaquim de Vasconcelos, que tem batido à porta dos teus antigos inimigos, pedindo factos e calúnias para urdir a tua biografia. Se isto é tão verdade como é verdadeira a pessoa que mo afiançou, prepara-te para desprezar a afronta, e veste arnês de aço que rebata o ferro do couce. Alguém lhe perguntou que motivo teve para te provocar; respondeu que apenas te conhecia de vista; eu, porém, se a memória me não falha já te ouvi dizer que este Joaquim de Vasconcelos foi teu hóspede em S. Miguel de Seide, etc.
RESPOSTA
Tens boa memória. Joaquim de Vasconcelos foi meu hóspede em S. Miguel de Seide; mas procedeu honradamente, e logo te direi a razão que tenho para te afirmar que se houve briosamente na hospedagem que lhe dei. Foi assim o grão caso. Um dia, no ano do 1870, me escreveu de Guimarães o maestro Francisco de Sá Noronha, prevenindo-me que viria a S. Miguel de Seide apresentar-me um seu amigo de grande talento, notável teorista musical, educado em Alemanha, e literato de muitas esperanças. Alvoroçou-me a notícia, tanto pela visita do célebre violinista, como pela apresentação de um moço prendado das belas cousas do coração e do espirito, que todas brotam de seu onde o amor das amenidades literárias e das deleitações da harmonia lhes aquece os germes.
Em uma alegre manhã de Julho chegaram os snrs. Noronha, e Vasconcelos a esta casinha, à volta da qual os silfos da poesia borboleteiam, desde que o visconde de Castilho e Tomaz Ribeiro por aqui estiveram.
Recebi o snr. Joaquim de Vasconcelos com quanta cordialidade e lhaneza cabia nas minhas posses de aldeão. Dei-lhe o lugar de honra na minha mesa. Ouvi-lhe atenciosamente por espaço de dez horas as suas ideias republicanas, sem lhas impugnar, e as suas teorias sobre música sem lhas perceber, e os seus dislates em literatura sem lhos contrariar.
Ao cair da tarde, o snr. Vasconcelos, que não podia demorar-se, fez-me o obséquio de aceitar o meu cavalo, que teve a honra de o levar à estrada do Porto. Ao despedir-se de mim, o meu afável hóspede abraçou-me com efusão de veementíssimo júbilo por me haver conhecido e devido alegres horas tão rapidamente passadas.
Devolveu-se um ano, sem que eu tornasse a ver o snr. Vasconcelos; não obstante, a imagem deste cavalheiro, uma vez por outra, acudia às minhas reminiscências daquele dia tão literário, tão cheio de palavras, de sistemas, em fim, de mútuas promessas, que me faziam esperar daquele moço alguma coisa menos cruel que um inimigo.
Eis que o snr. Vasconcelos dá à luz um livro de crítica à versão do Fausto, pelo snr. visconde de Castilho; e, ainda antes de o ler, já eu sabia que o meu hóspede tão graciosamente recebido, me insultava como escritor e como homem, enxovalhando-me com vilipendiosas aleivosias, como se não bastasse ao seu injusto rancor malsinar-me de ignorante.
Aqui tens, meu caro amigo, repetido o assinalado sucesso do advento do snr. Vasconcelos a esta quinta de Seide.
Como ele está escrevendo os escândalos da minha vida, que naturalmente veio espionar quando cá entrou, bom seria que ele dissesse que cá tenho grandes infâmias na minha história lendária, e uma das mais graúdas foi recebê-lo em minha casa.
Falta-me explicar-te onde está o procedimento honroso do snr. Vasconcelos na hospedagem que lhe dei. Está no seguinte: quando ele saiu da minha mesa, contaram-se as colheres de prata, e não faltava nenhuma! Honra lhe seja!
                                                   Teu do coração,
                                                            Etc.
P. S. Se o snr. Joaquim de Vasconcelos, depois da publicação desta carta, entender que me deve pagar o aluguer da cavalgadura, o almoço e o jantar, autorizo a tesoureira das Velhas do Camarão a receber a importância, e passar recibo.


Noites de insomnia offerecidas a quem não póde dormir, por Camillo Castello Branco, N.º 6—JUNHO, 1874, LIVRARIA INTERNACIONAL, pp. 84-88

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