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Caricatura de Rafael Bordalo Pinheiro, publicada na revista Pontos nos ii, nº 42, 20 de Fevereiro de 1866, p. 333 [Tocar para ampliar] |
Na edição de 11 de Fevereiro de
1886, um poeta inspirado e profético, que assinava como Frei Lourenço de Braga, publicou na revista Pontos nos ii um longo poema, que já aqui
vimos, em que, a dado passo, anunciava:
— Ó berço da monarquia,
Vais ser sepulcro do Fontes!
Não seriam necessários muitos
dias para que a profecia se cumprisse: no dia 16 do mesmo mês, Fontes Pereira
de Melo abandonava o Governo, onde seria Substituído por José Luciano de
Castro. Para o seu derrube, muito contribuiu o modo desastrado como o Governador
Civil do distrito, o Marquês de Valada, lidou com o conflito que opunha Guimarães
a Braga (entretanto, fora substituído no cargo por Peito de Carvalho). A
caricatura que saiu nos Pontos
nos ii de 20
de Fevereiro satiriza a queda de Fontes Golias às mãos do seu bailio, o Marquês de Valada, que o
atinge com a pedrada do conflito entre Guimarães e
Braga.
Na página que antecede a
caricatura, a rubrica Crónica
trata
do mesmo assunto, em prosa ilustrada pela pena de Bordalo, que a seguir se transcreve.
Crónica
Os governos do nosso país são
como os carros americanos: arrastam-se pesadamente, dolorosamente, mas enfim,
mais dia menos dia, lá chegam ao termo da carreira.
Não há situação que não tenha o
seu Algés, o seu Intendente ou o seu Príncipe Real onde encontre o extremo da
linha.
O sr. Fontes, porém, descobrira
o meio de evitar esse extremo fazendo-se condutor num carro da circulação.
Assim, a jornada seria eterna,
se o garoto do Bailio não lhe tivesse colocado nos rails o pedregulho de Braga e
Guimarães, por sobre o qual o carro da governação não pôde saltar, do que
resultou sair da linha, obrigando a cair as bestas e fazendo empalidecer de
medo a maioria dos passageiros — ou seja antes os passageiros da maioria...
O citado pedregulho complicava,
ao que parece, com o próximo casamento do príncipe herdeiro, por onde se conclui
que o carro da circulação descarrilou na linha do Príncipe Real...
Com a agitação que lavra pelo
país o grande homem receava muito que os ares se entroviscassem e que chegasse
até a correr sangue por ocasião do casamento do príncipe real.
E lá isso é que ele não queria
que corresse, porque a menor pinga daquela matéria podia manchar-lhe para todo
o sempre o seu dólman bordado e flamante como uma antiga colcha da Índia.
O sr. Fontes viu-se pois
entalado entre a cruz da demissão e a caldeirinha do sangue fresco.
Optou pela cruz, mas só ele
sabe as lágrimas que chorou para se resolver a botá-la às costas!...
Antes de opinar por essa
resolução, mais difícil de tomar de que meia canada de ruibarbo, o sr. Fontes
fez tudo quanto pôde, no propósito de convencer o sr. Hintze a que desistisse
de arrastar o ministério ao Vale Escuro.
A queda do ministério não podia
ser mais dolorosa para o sr. Fontes de que no momento actual.
Não que lhe importasse o
chimbalau que ia apanhar a sua fiel maioria; porque o sr. Fontes, do alto do
seu pedestal, considera tanto a citada maioria como os pintassilgos, do alto
seu poleiro, consideram o fundo movediço da gaiola...
Mas, caindo o ministério, já s.
exa. não pode, como fizera contas, mostrar o seu garbo de príncipe de sangue e
o seu capacete de plumas de arara nos festejos do casamento do príncipe seu colega!
E foi por causa disto que o sr.
Fontes se lançou aos pé do sr. Hintze, pedindo-lhe pelas alminhas dos seus
defuntos que deixasse estar o governo tem-te não caias pelo menos até ao dia do
nó cego no matrimónio do príncipe presumpto.
— Ó colega! dizia-lhe ele com a
voz entremeada de soluços; tenha dó e compaixão dum pobre aleijadinho que não o
pode ganhar.
E punha as mãos e as pernas
como o sr. marquês de Valada, a fingir que estava aleijadinho.
Mas o Hintze ficava de cal e
areia.
— Olhe que eu morro de ralação
se não mostro o dólman no casamento do príncipe!... Não mi matis, não mi ralis...
E o Hintze, de pedra!
— Ora veja se esta formosura
pode ficar no fundo do baú! e mostrava-lhe o rico dólman.
E o Hintze de granito!
— Se estas plumas podem ser
relaxadas à traça do cabide! e apresentava-lhe o capacete de plumas.
E o Hintze de pedreneira
E mostrou-lhe tudo, desde as
vestes exteriores até os segredos mais recônditos da sua fina roupa branca; mas
o Hintze tanto mais inabalável quanto abalado ele sentia o dente histórico dos
trambolhões ministeriais!
E foi assim que ele caiu,
aniquilado pelo próprio filho que acalentara em seu seio!
Nós já lho havíamos prognosticado: aquele mancebo, que aumenta os impostos do
pão para aliviar os da piteira, é como o
filho da citada piteira: cresceu para matar a mãe!...
Pontos nos ii, 20 de Fevereiro de 1886, p. 331
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