O Carnaval de 1879 na casa de Martins Sarmento

Francisco Martins Sarmento (1833-1899)

O Carnaval do ano de 1879 não foi particularmente brilhante. Segundo a descrição que aparece no jornal Imparcial de 28 de Fevereiro, o Entrudo daquele ano, para o que veio fazer, escusado seria ter aparecido. Isto porque pelas ruas apenas se via um urso (sem ofensa) desempenhando o seu papel de animal fastidioso – no teatro, algum pobre dominó, que entra às 8 horas mudo e sai à 1 ou 2 tendo gasto a mesma eloquência! O Carnaval vimaranense de 1879 foi frio como a geada (...), taciturno como um dia enublado e insípido como a chuva miúda e incessante. Todavia, desse ano ficaram na memória dois bailes de máscaras nos palacetes de Francisco Martins Sarmento e do Conde de Margaride, realizados, respectivamente, nos dias 22 e 23 de Fevereiro. Um longo Folhetim, publicado no jornal Eco Popular, de 3 de Março, descreve aqueles bailes, de onde extraímos a notícia acerca da festa da casa de Martins Sarmento, que nos dá uma imagem do arqueólogo vimaranense algo diferente do retrato austero que, regra geral, se lhe associa.

Dois dias de triunfo em Guimarães
(…)
Foi a noite de sábado escolhida por este cavalheiro, hoje tão notavelmente festejado pelas suas preciosas qualidades e pelo seu muito e profundo saber, para atrair aos seus luxuosos salões todos quantos têm a honra e a ventura de cultivar a sua sincera e leal amizade e de sua esposa, no que também vai felicitado e honrado o escondido autor destas linhas.
Eram nove horas da noite e já nos aposentos destinados à soirée masqueé redemoinhavam nos compassados e vertiginosos movimentos de quadrilhas e valsas crescido número de máscaras em apropriados e brilhantes costumes.
Soavam as 6 horas da manhã do dia seguinte e ainda os basbaques da monotonia, toscanejando no último quartel do pesado e longo sono, rangiam cá fora os dentes e mordiam a língua de enraivecidos por entreverem ao raiar da aurora a sua caprichosa Deusa com os acordes da harmonia, que acompanhavam o último episódio daquela suave e saudosa e intercaladora passagem desta marmórea vida vimaranense. E Francisco Martins Sarmento, louco de entusiasmo e palpitante alegria, apelava da sentença de desocupação dos pais de famílias para alcançar mais um prazo de dilação, sem querer sem dúvida com isto esconjurar os enguiços dos que se espreguiçavam lá nas trevas exteriores e antes como que repetindo-lhes os seus convidativos e formosos versos:
                               "Quem sente roer-se
                               De pena e de tédio
                               tem cá tal remédio
                               Que val bem por mil:
                               Estreite a cintura
                               Dum par donairoso
                               E atire-se ao gozo
                               Da valsa febril!"

Mas desta vez era tarde, tarde daquela noite que foi dia, manhã daquele dia que vinha a ser noite, noite sombria de saudades sem esperança dum breve amanhecer para outra festa semelhante.
E na realidade, quem viu agitar-se à influência dm astro de luz de mil cores o mais nobre e o mais belo núcleo da sociedade vimaranense, quem sentiu palpitar de estranho modo o coração, sujeito às inebriantes vibrações do almo calor que a inspiração derrama, pondo ao serviço do bom gosto e do bom tom os toques mais finos da arte de aparecer por um modo encantador, quem, passados os venturosos momentos, relembra aquele novo mundo, chamado à vida pela vos poderosa e portentosa do amor da beleza com todos dos seus naturais e artificiais adereços - quem tudo isto viu, sentiu e gozou não pode deixar de recorrer à fantasia para que esta, na sua miraculosa faculdade, nos continue aos olhos do espírito o mundo vaporoso e feiticeiro que por toda aquela brevíssima noite nos embalou em luminosos sonhos acordados...
Quem não viu então, veja, pois, agora:
A Exma. condessa de Margaride, esta nobre e gentil senhora, não é, não foi nesta noite a virtuosa esposa do conde de Margaride. É, foi, a majestosa e adorada Pitonisa que evocou dos infernos a alma do profeta Samuel.
Que majestosa figura, que donairoso porte, que propriedade e riqueza de ornatos. Era a poesia bíblica no seu voo mais arrojado e mais simpático.
- D. Cristina Martins, a mimosa e a flexível e meiga georgina portuguesa, não era o botão de rosa que embalsama o ar de quantos a olham... era a pudica e casta princesa dum alcaçar mourisco.
Que turca, a valer mais do que todo o velho império do Islão.
Junto a esta entra um anjo do céu da Andaluzia. Que parece no meigo esquecimento da inquietação sevilhana a nossa patrícia D. Adelaide Martins. Seria? Agora um grupo interessante: dum lado a vivaz granadina, do outro a morena veneziana e por fim as tranças negras, desalinhadas e ondulantes duma doida com muito juízo; e todas três em extremo insinuantes e simpáticas.
Dizem os circunstantes que são D. Maria José, Doroteia e Rosa Meneses. Serão? E a dama, castelã e namorada da legendária corte de Catarina de Medicis? “Parece, pelos seus formosos olhos, que é a D. Adelaide Meneses"; - rosna um informador. Obrigado pela notícia!
E aquela simpática menina fugida dos ímpetos da inocência aos amorosos arrulhos da ave azul celeste de Bernardim Ribeiro, disfarçada adrede nos caprichosos e honestos recatos duma leiteira dos subúrbios? - "Chama-se D. Maria Martins Vilas Boas, da nobre casa de Lousada" - segreda-me de soslaio um conviva da esquerda. Muito agradecido pelo desengano!
E a lavradeira, brilhando como a figura em escorço da tela miraculosa, onde um, pincel bolçou a vida; e a donairosa polaca, profundamente meiga e misteriosamente encantadora, que faz a sua entrada nos salões ao lado da estrela da manhã, mimosíssima e preciosa criação que subleva o vivo desejo de a guardar dentro duma redoma de vidro? - resmunga ainda a impertinência - é a primeira uma nobre donzela de Lousada, a segunda D. Inês de Queirós, irmã terceira de D. Cláudia de Queirós, adoráveis filhas do digno magistrado que ora preside o foro de Guimarães. Veja-se também a animada e cismadora vivandeira, mágico antídoto contra todas as más paixões, sem exceptuar a da guerra, cuja profissão aliás exibe por forma que se deseja morrer a seu lado.
Dizem que o seu nome é D. Guilhermina Pedrosa, da vila de Santo Tirso. Bem-vinda a gentil e graciosa hóspeda.
Campeia no centro desta animada exposição universal o vulto altivo e sereno da infeliz Isabel de Inglaterra, a quem o poeta dedicou em verso o célebre lema, de que o dia mais feliz da sua vida foi aquele em que mais amou. Aposta o meu impertinente informador que esta é realmente D. Antónia de Melo Sampaio!
Fugiu do deserto uma formosa filha do Emir Ab-del-Kader e desceu das montanhas da Suíça uma ninfa da deusa da caça. estas são realmente o que parecem, E tanto assim que iludem a curiosidade mais tenaz dos analisadores. Que belos dois tipos, que duas tão encantadoras criaturas, capazes de fazerem, em benefício das respectivas nacionalidades, a maior façanha feminina de que jamais houve memória. Uma, se quisesse, converteria à crença do Alcorão meia cristandade deste reino fidelíssimo; a outra atrairia, se o apetecesse, aos férteis cantões da república helvética uma grande parte da jeunesse doré que, apesar de bem apercebida, só vê caçadoras na Suíça e castelães árabes quando D. Maria d Carmo e D. Luísa Pinheiro Osório lhas querem mostrar por milagre do seu bom gosto e primoroso engenho.
E... a contas com o tempo indiscreto e arrogante no seu fatal escorregar. Fique a impressão desta noite para se erguer como marco miliário na vida monótona desta terra, a par da noite em que op Snr. conde de Margaride proporcionou às famílias de suas relações e amizade uma soirée masqueé.
(...)
Guimarães, 26 de Fevereiro de 1879
Z.
Eco Popular, Guimarães, 3 de Março de 1879

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1 Comentários

Melly disse…
Texto encantador.....obrigada!