Da guerra

Francisco de Goya, Os Desastres da Guerra (gravura n.º 15)


Aquele era um país onde se suspirava pela liberdade ausente, onde não era respeitado o primeiro e mais elementar dos direitos humanas, o de todos nascerem livres e iguais. Um país mal governado, entregue às mãos de incapazes doutrinados por fanáticos, cultores do obscurantismo e armados com os mais eficazes instrumentos de repressão política e de censura das ideias. Um país onde se vigiava o pensamento e se proibiam e queimavam livros. Um país que impunha a certificação da pureza de sangue e onde os que não pertenciam à “raça” que se tinha por superior eram marginalizados e perseguidos. Naquele país havia quem sonhasse com a liberdade que haveria de chegar e olhasse com deslumbre e esperança para aquela outra terra onde a liberdade desfraldava bandeiras que anunciavam os dias de glória de um novo tempo.

Até que chegou o dia em que a potestade do tal país que se erguia como o farol da liberdade, da igualdade e dos direitos do homem, anunciou que iria libertar a pobre gente que vivia mergulhada na tirania e nas trevas. Aliando-se a um vizinho que estendeu tapetes de flores no chão que pisavam as suas tropas, enviou o seu exército, o mais poderoso do mundo, comandado pelos seus melhores generais, em direção à pequena e triste nação que era Portugal, na certeza de que teria direito a uma entrada solene e triunfal e de que seria recebido com carpete vermelha, girândolas de foguetes e grinaldas de flores oferecidas por um povo grato pelo futuro venturoso que lhes anunciava. Mas enganava-se.

Os homens e as mulheres daquele país, mesmo aqueles que defendiam o ideário de liberdade e igualdade que apregoavam os seus supostos salvadores, ao olharem para aquele exército que lhes atravessava o país, não viram o libertador “de benéficas e magnânimas intenções”. Viram o invasor que lhes incendiava os campos, que lhes arrombava as casas, saqueava as despensas, os celeiros e as adegas, roubava as joias e o dinheiro, violava as mulheres e estuprava as filhas, assaltava as igrejas e as transformava em casernas e cavalariças, prendia, torturava e matava aqueles que não se lhe submetiam. Não viram o amigo benévolo que os ia libertar da tirania, mas o usurpador tirânico que lhes queria tomar a sua terra, agrilhoando-a ao seu império.

E as pessoas daquele país, de muitas as idades e todos os credos políticos, muitas delas apenas armadas com paus, pedras e o amor à independência da sua nação, recusaram a submissão ao invasor e organizaram-se para não deixarem o seu país “ir para o maneta” (expressão que nasceu ali, eternizando a memória do mais sanguinário dos generais de Napoleão, Louis Henri Loison, o maneta). Não queriam ser “libertados”, mas continuar a viver num país independente (a liberdade não tardaria muito, mas seria conquistada pelas suas próprias mãos). Lutando, não era a monarquia absoluta que defendiam, mas a existência e a autonomia do seu país. E a brava gente daquela terra pobre e triste juntou-se para defender o seu chão, enfrentando o mais poderoso exército do mundo. E venceu-o, como ainda o venceria duas vezes mais.

O que acima se contou não é o que está a acontecer na Europa dos nossos dias. Aconteceu há 214 anos num país chamado Portugal. É uma história com episódios memoráveis, que passou por Guimarães e que agora se repete, como tantas vezes se repetiu, noutros tempos, com outros protagonistas. Tal como aconteceu na Europa do final da primeira década do século XIX, quando Portugal foi invadido por uma potência dirigida por um homem pequenino com delírios de grandeza imperial, Napoleão, há hoje um país, a Ucrânia, que também resiste à invasão de um Estado muito maior e mais poderoso, dirigida por um líder desalmado, cruel e calculista que, como Napoleão, alimenta sonhos imperiais. E, ao contrário do que por aí dizem, os ucranianos não estão a defender um regime, a democracia, nem a Europa ou aquilo que ela representa nos dias de hoje: tal como os vimaranenses de 1808, defendem a independência do seu país e o seu direito de viver em paz.

Pessoalmente, não nutro particular simpatia por figuras que, como Volodymyr Zelensky, chegam ao poder cavalgando o populismo, sem que se percebam quais sejam as ideias que os movem, porque costumam defender as que são mais convenientes às suas aspirações pessoais. Mas não tenho dúvidas de qual seja o meu lado nesta guerra, porque este é um conflito onde é fácil tomar partido. Basta colocar-me no lugar do outro e imaginar de que lado estaria se aquele país fosse o meu — o que não é difícil, porque, como vimos, o que está a acontecer à Ucrânia já aconteceu a Portugal, dois séculos lá para trás. E, se ainda não consigo ver a Ucrânia como um modelo de virtudes democráticas, sei que não queria viver num mundo dominado pelo senhor Putin e por aquilo que ele representa.

É quase um lugar comum dizer-se que a História se repete. Não se repete, mas pode-se aprender com ela.

[Texto originalmente publicado no Jornal de Guimarães em Revista, n.º 13, Abril de 2022]

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