O Café Oriental, por A. L. de Carvalho

Café Oriental, Toural, Guimarães. Painel do faraó Seti I.

Anunciado, nas páginas do jornal Ecos de Guimarães, como “um grande melhoramento para a cidade e uma maravilha do engenho e da arte do grande artista sr. Capitão Luís de Pina, nosso ilustre patrício”, o Café Oriental foi inaugurado no dia 20 de Dezembro de 1925. Era um empreendimento de José e Francisco da Costa Magalhães, Eugénio Leite Basto e José Fernandes da Costa Abreu, que vinha preencher uma lacuna na cidade de Guimarães, onde, à altura,  não havia um café digno desse nome. A sua decoração, com motivos inspirados no antigo Egipto, foi assim descrita no jornal republicano A Razão do dia 24 daquele mês:
Cenas da vida e da mitologia egípcia guarnecem o interior da sala, que cremos representar a entrada de um templo do velho Egipto.
Ao fundo um belo quadro onde se vêem as pirâmides e a “esfinge”; dos lados divindades faraós, tudo isto com uma verdade tão flagrante que julgávamos estar vendo fotografias dos famosos baixos-relevos das cidades mortas dos súbditos de Osíris. É, enfim, unia linda sala, com bom gosto e comodidades de que Guimarães se pode orgulhar com justiça. Folgamos em poder dizê-lo e é com o máximo prazer que felicitamos os proprietários pelo seu amor à Terra e o Exmo. Snr. Capitão Pina pela sábia direcção que soube imprimir aos trabalhos.
Um outro jornal vimaranense, A Ortiga, relatou, no dia 25 de Dezembro, a cerimónia da inauguração do novo estabelecimento, que foi muito concorrida.
No acto, foram levantados alguns brindes de louvor à simpática e bairrista iniciativa, e de regozijo pelas prosperidades futuras daquele modelar estabelecimento que, todo elaborado, ainda nos mais pequenos detalhes, em raro e formoso estilo, através do qual perpassam alguns milhares de séculos de história egípcia, fica sendo o primeiro, no género, e um dos melhores, pelo seu conforto e elegância, existentes em Portugal.
Um pouco mais tarde, num dos seus primeiros números de 1926, o Ecos de Guimarães deu à estampa um texto jocoso de A. L. de Carvalho sobre a reabilitação de Guimarães no conceito citadino porque, enfim, já tem um Café!
Aqui fica.
Café Oriental, Toural, Guimarães. Painel da Esfinge
Um café que se inaugura
É uma situação humilhante que acaba!

Guimarães, o velho burgo, reabilita-se. Reabilita-se Guimarães no conceito citadino porque, enfim, já tem um Café!
Que lhe faltasse um hotel, era grave: mas não ter sequer um Café — era o cúmulo!
Haviam, é certo, por aí, algumas cavernas de caco, espécie de bocetas de maus encontros. Mas um Café moderno, arejado, limpo, isso é que não havia. Não havia um Café decente e fazia falta. Tanta falta fazia um Café abordável que já os créditos da terra sofriam desconceitos amarfalhantes. Já de nós se dizia: que eramos tão improgressivos, que nem um Café tínhamos para receber. De tal sorte que, viajante que por aqui passasse, só por descuido parava.
Parar, para quê?! Para ver a relíquia dos nossos monumentos? O espólio venerando dos nossos museus? A fisionomia embiocada das nossas ruelas? Observar o fulcro industrial deste povo? Sim, tudo isso seria admirável; mas acompanhado com o aperitivo duma xícara de chá, chávena de café ou copo de cerveja — para refazer o ânimo e amainar as poeiras.
Porque, a verdade é esta: não há hoje terrinha de província, que se preze, aonde não se tope um Café, espécie de apeadeiro para os turistas e de galeria para os indígenas.
E porque sucede assim? Compreende-se: para satisfazer a uma ideia geral e elementar de urbanismo e de sociabilidade. Em síntese, pois, conclui-se: que o Café representa nas modernas sociedades uma função social. Tem, um Café, foros de instituição; e é, afinal, pelo seu mise-en-scène, que se aquilata da civilização dos aglomerados citadinos.
Veja-se agora, depois disto, a linda figura que estávamos fazendo porque não tínhamos um Café!
É claro que não autorizámos a crítica estranha a reputar-nos um povo bárbaro, só porque não tínhamos uma casa de Café. Para tal se poder concluir seria mister provar-se: que não só não tínhamos essa casa de Café, como até não o tomávamos... em casa. E isso é que não consta, louvado Deus! Porque embora Mantegazza, médico e publicista italiano, fulminasse a aromática bebida (como o chá, o tabaco e o álcool) por excessivamente enervante, a verdade, a verdadinha é que o rico cafezinho sempre andou na nossa intimidade.
Dest’arte se comprova que não éramos bárbaros, porque eramos apenas, pela aparência, semibárbaros. Não tínhamos até há dias um Café, o que era razão bastante para os nossos incomparáveis bairristas velarem o rosto, compungidos de tristeza e corridos de vergonha.
Sobretudo, que saudade! Que saudade dos idos tempos do botequim do Vagomestre — esse venerável cenáculo que ali, no Toural, há trinta, há quarenta anos, foi ponto de reunião da nossa gente de algo, do escol, da fina flor da nossa terra!
Enfim, os tempos que mudam e a sorte que é vária, tanto correram dos fados a fortuna que nos repuseram no bom caminho, reabilitando-nos perante a tradição, a história e o conceito dos estranhos.
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Já temos um Café! Pef!!!
Já temos um Café para “toda a sorte e condições de gente vária”. Que, hoje em dia, um Café representa, em grosso estilo, uma das mais caras conquistas da democracia. Se na hora augusta em que foi arrasada a Bastilha uma voz do povo gritou, em desforra, “aqui dança-se!”, parafraseando-a podemos em farófia gritar: “aqui cafezeia-se!”
Digam embora os catões da temperança — que um Café não é o local indicado e requerido para ajudar à morigeração dos costumes; acusem mesmo o seu ambiente de nocivo e contrário à atracção do lar; considerem-no, se quiser, obra do diabo, destilando cafeína, nicotina, cocaína, e mais venenos que acabam em ina: nem por isso um Café bem montado deixa de ser um factor apreciável de progresso nas relações do indivíduo com a sociedade.
É que ali, sisudos puritanos, não se toma apenas esse tónico estimulante, essa bebida escura e perfumada que se tornou favorita, no século XVIII, dos racionalistas e livres-pensadores; porquanto um Café, acima de tudo, é um centro de parola. Recordemo-nos, em curvada admiração, que foi emborcando, gole a gole, chávenas de café, que os celebrados Enciclopedistas devassando as nebulosas do Direito, da Razão e da Justiça (tudo com maiúsculas), espancaram o velho preconceito senhorial, outorgando aos povos escravizados essa famigerada carta de alforria que se chama enfaticamente os Direitos do Homem.
Duvidam? Basta entrar a gente num Café, digno deste nome, para logo se nos deparar uma multidão atacada dum fluxo labial admirável, discutindo, discreteando ou simplesmente palrando, e este fenómeno verborreico é devido, sabem a quê? ao café— essa bebida ideal que pelos alcalinóides que encerra é um antídoto contra a letargia, a modorrice, a estupidez.
Ai, quantos triunfos não deve a inteligência à pequenina chávena de café e ao seu companheiro predilecto o “cigarro palreiro”! E que esplêndidos sonhos não fazem pairar sobre o espirito difuso de quem escreve ou fala os bem conjugados vapores que sobem duma chávena de café e dum cigarro — como que a induzir-nos a atravessar a vida sonhando, única maneira de tornarmos a vida suportável!
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Para melhor, o Café que se inaugurou, por felicidade nossa, chama-se bizarramente Café Oriental. Não que o nosso lindo e bem proporcionado Toural possa ter confrontos com as estepes, com o deserto, nem tampouco que para lá ir se torne mister escarranchar-nos na corcunda dum camelo... desses que para aí há.
Em verdade, o título foi bem achado, é de palpite, se nos lembrarmos que a primeira casa de Café parece ter tido origem em Meca, no século IX, e se depois desse pormenor histórico nos lembrarmos igualmente que uma espécie de boémia do espírito nos atira a toda a hora para o extravagante, tendência conhecida em arte e em literatura por — futurismo.
Ora pois, para que não sejamos filiados na categoria zoológica dos morcegos domésticos, vamos até lá, ao Café Oriental: não para matar o tempo ou tesourar má-língua, mas, como o político, para ganhar popularidade; como o comerciante para conhecer a balança dos negócios; como o jornalista para colher uma entrevista; como o celibatário para epistolar à sua Dulcineia; como, finalmente, o Jerónimo Sampaio para segurar um seguro.
Toma, pois, este braço, caro leitor; deixa o teu hábito de bicho do buraco; dá-te uns ares mundanos, meio graves e meio irónicos, e vamos lá, ao Oriental, se queres ser do bom tom; da boa roda; andar nas vozes; ter fumos de importância; gozar, numa palavra, fama de “persona” culta, inteligente e estares na berlinda dos candidatos.
Sacode, duma vez para sempre, esses modos retraídos, beatíficos, que te comprometem, e, resolutamente, — entremos!
É entrar, senhores! é entrar! na certeza de consciência de que uma casa de Café, como o Café Oriental, não é um lugar de perdição, mas de resgate, pois não só restitui os créditos à nossa boa terra, como até nos dá, a todos, esse verniz de civilização de que tanto andávamos precisados.
Vamos, pois: coragem, caro leitor! É deixar a bisonhice. A Dona Opinião Pública tomará assento ao nosso lado. Lembremo-nos de que já Bocage frequentou o Nicola, Ramalho o Martinho e Camilo o Águia d'Oiro, o que prova que a atmosfera dum Café, embora carregada de fantasmas microbicidas, constitui um meio admirável para caldear a inteligência e forjar opiniões, bastando, a quem duvide, pôr os olhos na Brasileira do Rocio, — esse café singular que faz e desfaz ministérios, conspira e vence revoluções, com a mesma facilidade com que um Marat de via reduzida bate as palmas e, sobranceiramente, grita para o criado solicito à gorjeta:
Ó tu, um café!
Venha pois, por analogia, um café, e bem quentinho, ó tu! para que ao seu calor e ao seu aroma discutamos, façamos blagues sobre política, religiões, literatura, arte e mais enigmas do Universo e tudo com ruído, com prolixidade, com entusiasmo loquaz, como é próprio dum Café — esse Café Oriental que dando honra à terra dará proveito aos seus donos, a quem apresentámos por isso mesmo o nosso modesto cartão de parabéns.
A. L. de Carvalho.

Ecos de Guimarães, 9 de Janeiro de 1926

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