Das artes de justificar a destruição de património

A muralha em meados do século XX. Ao fundo, ainda se vêem paredes da "Câmara do Mariano", demolidas em meados da década de 1950.

Os que governam a cidade têm especial propensão para deixarem a sua marca para a posteridade, fazendo obras. Não é só deste tempo, nem apenas desta cidade. E os argumentos que, em cada tempo, se usam para justificar obra nova que implique a destruição do que já existia não variam muito: o que se vai fazer é obra muito útil e necessária (mesmo que não tarde a demonstrar-se que não havia nenhuma necessidade dela) e o que vai ser arrasado não presta, nem faz falta, é feio, está degradado, ameaça ruína, coloca em perigo a segurança e o bem-estar dos munícipes (e, mesmo que estivesse em perfeito estado de conservação, ia abaixo na mesma…). Foi assim que Mariano Felgueiras, político vimaranense que muito admiro, por muitas razões, justificou a destruição de um troço de muralha para alargar o terreno onde seria levantado um projecto que acarinhava, o novo edifício dos Paços do Concelho, que ficaria conhecida como “a Câmara do Mariano”, do qual se chegaram a lançar os alicerces e a erguer parte das paredes, mas que não passaria daí. Ora, se se iam destruir 30 metros de muralha (na verdade foram cerca de 50 metros), ainda ficavam 230 metros, que seriam mais do que suficientes “para consolar aqueles que só agora despertam para olhar pelas coisas do passado”. E os que possam dizer o contrário, só o dirão porque servem interesses ocultos e inconfessáveis:as suas intenções, as verdadeiras causas que os impulsionam, os seus verdadeiros fins, desmascaram-se límpidos na minha retina”, disse Mariano, em 1925, numa entrevista ao jornal A Razão, de que reproduzimos a seguir a parte em que se refere ao apeamento de parte da muralha que cercava a vila de Guimarães desde o tempo do rei D. Dinis.

A questão da muralha

Mas que me diz V. dos clamores que a execução deste projecto provocou por implicar a destruição da antiga muralha da cidade?
— Fez bem, lembrando-me esse incidente. A execução do nosso projecto não implica a destruição da muralha da cidade. Pelo contrário, respeita-a e dá-lhe realce. Não é destruir a muralha da cidade deitar abaixo trinta metros da sua extremidade, a qual justamente, em toda a sua extensão, ameaçava iminente ruína. Ninguém ignora e ainda se pode ver que esses 30 metros da muralha, tinham os alicerces completamente fora da terra, estavam desaprumadíssimos, com pedras já rachadas por ter o terreno cedido ou por ter havido fortes deslocações.
Mas ainda que essa parte da muralha estivesse perfeita, havíamos de pôr de parte o nosso projecto, ou desmanchar-lhe, irremediavelmente, a sua estética, para respeitar 30 metros de uma muralha que tem 230 metros de extensão?
Então os 230 metros que ficam não chegam para consolar aqueles que só agora despertam para olhar pelas coisas do passado e têm deixado estragar e destruir tanta coisa de belo e do interessante, sem o mínimo protesto, como ainda há bem pouco tempo aconteceu com duas janelas dos Paços dos Duques de Bragança?
Eu respeito muito as opiniões dos outros, por mais opostas que sejam às minhas, quando nelas reconheço sinceridade. Mas desprezo-as, absolutamente, sempre que lhes vislumbro má fé.
A muralha nada perde, só tem a ganhar com a realização da obra projectada. Apeou-se lhe uma pequena parte que amanhã cairia numa derrocada inevitável. Mas os 230 metros restantes, que aqui eram parede de uma estrada passam a ser a parte lateral, ajardinada e arborizada de uma avenida de 18 metros de largura.
Perde a muralha com isso?
Eu sei, eu vejo fundo na consciência de todos aqueles que até hoje se têm referido ao corte da muralha. As suas intenções, as verdadeiras causas que os impulsionam, os seus verdadeiros fins, desmascaram-se límpidos na minha retina. Dou-lhes o apreço que merecem. Mal de mim se não passasse longe e por alto de tudo isso. Nunca chegaria a fazer coisa alguma de utilidade. Falharia assim à mais querida das minhas aspirações ser útil aos outros.
E por hoje mais nada; isto já vai muito longo e, no entanto, ainda lhe poderia dizer muito mais sobre o que temos feito, sobre o que projectamos fazer.
Estava terminada a entrevista. Retiramo-nos agradecido à amabilidade do nosso entrevistado e absolutamente convencido de que a actual vereação tem feito uma obra de administração que honra Guimarães e a República.
Mário.
A Razão, 11 de Fevereiro de 1925


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