Pregões a S. Nicolau (100): 1948

S. Martinho de Tours e S. Nicolau de Bari (à direita)

Depois do de 1922, o pregão de 1948 é o segundo dos seis que Torcato Mendes Simões escreveu para as Festas Nicolinas. Foi lido por José Augusto Martins Santos. É antecedido por uma poesia dedicada a Bráulio caldas, o Egrégio Cantor das “Andorinhas Mansas”. A abrir, recupera um elemento que aparecia nos pregões da viragem do século XIX, um preâmbulo em que um rei imaginário de nome extravagante (neste caso, Dom Arquimedes Pelintra Maracotão e Aleixo da Rocha Peneda Ferrugial e Freixo), que decreta que a festa não morreu.

Segundo O Comércio de Guimarães, as festas deste ano foram muito modestas, não suscitando entusiasmo. Quanto ao pregão, que diz o redactor do Comércio lhes foi oferecido pelo autor da sua letra, revelando as qualidades literárias e poéticas do nosso amigo, que presta homenagem ao saudoso poeta-académico Bráulio Caldas, fazendo um sucinto apanhado de assuntos palpitantes.


Nunca será demais, em respeitoso HOSANA,
Lembrar o Inspirador da FESTA NICOLINA;
E assim este Pregão, na forma BRAULIANA,
Recordara sua alma nobre e diamantina.

As margens do VIZELA, idílicas, virentes,
Deram-lhe estrofes dr oiro, em célicas espranças-
E hão-de chorá-lo sempre, em nénias plangentes,
— O Egrégio Cantor dasANDORINHAS MANSAS”.

M. S.

1948
BANDO ESCOLÁSTICO
da Festa Académica o S. NICOLAU
Recitado neste dia 5 de Dezembro, pelo aluno do 5.º ano
José Augusto Martins Santos.


DOM ARQUIMEDES, PELINTRA, MARACOTÃO E ALEIXO
DA ROCHA PENEDA FERRUGIAL E FREIXO,
ILUSTRE DESCENDENTE, EM LINHA OBLÍQUA, DOS ÚLTIMOS GUERREIROS,
SENHOR DOS VASTOS DOMÍNIOS DE “VALE DE PENEIREIROS”,
DOS VÍNCULOS INALIENÁVEIS DO SOLAR DA “PERMANENTE TESURA”;
FAZ SABER AOS SEUS FIÉIS VASSALOS QUE, POR MERCÊ DE SÃO NICOLAU,
A FESTA NÃO MORREU... AINDA DURA...
E EM NOME DO SAMPAIO E OUTROS MAGNATES,
QUE POR ELA TERÇARAM ARMAS EM COMBATES,
ORDENA-LHES QUE OUVINDO LER O PERGAMINHO,
ONDE HÁ ENSINAMENTOS, RALHOS E GRACETAS,
RUFEM AS SUAS CAIXAS DE MANSINHO...
— COM UMA MÃO SEGUREM BEM OS BOMBOS, COMO ATLETAS,
E SIGAM ALTANEIROS SEU CAMINHO,
BRANDINDO COM A OUTRA AS FORTES MAÇANETAS...


Rapazes, assim é... Promessa e profecia,
Ao Sampaio eu ouvi dizer bem alto um dia:
Adversos muito embora os desígnios da sorte,
Eu hei-de acarinhar a Festa até à morte...

Por ele, que de novo eu vejo entrar em liça,
À voz de Gratidão e lídima Justiça;
Por ele que a Festa vive e sofre e se amofina,
Ou bem perto de nós, ou por trás da cortina,
A Festa seja, este ano, altiva como dantes...
— Vivei a mocidade em emoções vibrantes!...

“Tresanda a velharia a nossa antiga usança”,
Dizem os empatões das rondas dos cafés;
— Olhamos o Futuro em doce confiança,
Temos uma só fé e uma só esperança,
— O mundo está mudado da cabeça aos pés...

E a conspirata urdida em tramas... à porfia,
Mais uma vez sucumbe à voz da profecia.
Da Festa o esplendor, por que ninguém desmanche,
(Minerva é sempre atenta e o Bom São Nicolau!)
Ouvi o edital, em estilo de revanche,
A relegar da Festa o que é perverso e mau:

Ressurja uma vez mais o Velho Estatuto
Do século passadoo ano trinta e sete;
Em vão poderão tentar; por mais finório e astuto,
Ninguém, seja quem for, na Festa o bico mete...
Mantem-se o Statu quo; para não haver abuso.
Seria extremamente audaz e caricato
Na Festa entrar assim qualquer pelintra intruso,
Sem ter identidade em nosso Sindicato!

Manes do Bráulio amigo, eu quisera,
Em Lira de oiro sonorosa e altiva,
Cantar a Festa como outrora era,
Torná-la fogo eterno em chama viva.

Papás do coração, que muito longe estais,
A vida é sempre assim — um temeroso inferno...
Vós, que a mesada a tempo sempre nos mandais,
Tal como se o valor da Bolsa fosse eterno,
Mandai-nos, por favor, uns escudinhos mais,
Abono de Família em Socorro de Inverno.

Por Deus, não nos falteis. Só temos uma pista:
O nosso protectorMonteiro Penhorista!

Falido areópago, em discussões e brigas,
(Um prestes a findar, virá mais outro ano)
Ó tu, que és vão clamor de Pátio de Cantigas,
Quando é que perderás o medo ao Pai Tirano?
(Calmo bom-senso a quanto amor obrigas!...)

Jogo de rapaziada, em que um atira o espeto,
Outro lança a bilharda, aquele joga o Veto,
Já muito tens sofrido e padeceste, ó tu,
Que deves pôr enfim toda a verdade Ó NU…

Ó rouxinol cantor, dos verdes canaviais,
Suspende, por favor, a voz, não cantes mais...

Damas de fina élite e graça sem igual,
Eis a maçã doirada, ouvi o madrigal:

De jalequinha curta e mangas rendilhadas,
Mudando em fino gosto o traje trivial,
Vos pareceis avós austeras, resignadas...
Figurinhas de Sèvres, em cintas delicadas...
Assim espalhafatoso e largo esse saial...

Madeixas de azeviche, em alva porcelana,
Brinquilhos de florão, em tufas de grinalda,
Eu julgo contemplar em terra sevilhana,
Rostos de gitanita, o Bairro de Triana,
Idílios de amor na Praça da Giralda.

Cintas à Pompadour, laços à Lavaliére,
Chapéus à Mazantini, ó belas amazonas,
Retratos” em perfil do grande La Bruyére,
Vós tendes o sabor das peças de Moliére,
Só vos falta o latim de austeras Sabichonas...

Em piano um minueto, em cravo a serenada,
No peito a refulgir colar de pechisbeque,
Em sala à Luís XV, a rebrilhar, doirada...
Só vos falta o toucado, a sofrega pitada,
A clássica sombrinha, o espampanante leque...

À prática do Bem eternas devotadas,
Conchitas sin temor, simpáticas, lendárias,
Em másculos perfis de artistas consagradas,
Vós tendes no rondel das típicas touradas,
Salero sin igual de Las Islas Canárias!

Em sonhos julgo ver um régio cortejo
De beleza sem par: liteiras e berlindas...
Boquinhas de carmim abrindo-se num beijo,
O que vos vim dizer não passa dum gracejo...
— Assim, vós sereis sempre insinuantes…, lindas…

Silêncio, Academia! Uma oração sincera
Por aquela santinha, que o Senhor levou;
Que para todos tão afável era,
Como se fosse a mãe, que nos criou;
Aquela que por nós a própria vida dera...
E a morte há pouco nos arrebatou:
Na glória de Deus, resplandecente,
Repouse a nossa Mãe terna e adoptiva;
E que a Saudade, lâmpada votiva,
Nos ilumine a alma eternamente.

Mais um decreto audaz, fatal e tremebundo,
Eu quero anunciar daqui a todo o mundo:

Do clássico latim o adorável texto,
Post tot tantosque tragicos labores,
Outrora era no quarto, agora é só no sexto...
Fortuna vitrea est... O tempora! O mores!

Ó Cónegos Doutores, ó lides liceais,
Ex cathedra locutae sunt voces discentes!
O clássico latim fugiu... não volta mais...
Minerva, veni et vide et vos stupete gentes!...

Ó filhas de Abraão, ó loiras permanentes,
Ofélias do Amor, românticas Julietas,
Cintos de vespa fina, amáveis, atraentes,
A vós eu vou falar, ouvi minhas gracetas:
Eu sei que vós trazeis, ó cabecinhas ocas,
Um beijo a palpitar nessas boquinhas loucas...
Dizei-me se gostais do som das guitarradas,
Pela noitada além, em lúgubres toadas,
Amor que canta e ri num coração ardente...
Quisera ser Romeu apaixonadamente...
Costureiras gentis, de peitos anelantes,
Vos sois a perdição dos pobres estudantes...

Dizem, si vera est fama, algo de sensacional
Dará brado no burgo e em todo o Portugal.
O burro do correio, a bem da Humanidade,
Irá breve atingir o limite de idade;
E por sorte feliz, destino bem clemente,
Irá pastar, enfim, campinas livremente...
E, por especial mercê do Abel da Recoveira,
Vai ser aposentado com a reforma inteira...

Cortejo sem igual de fúnebres fantoches,
A tal carroça irá para o Museu dos Coches.

Após quadra feliz de autênticas Farturas,
Um ano irá surgir de tristes amarguras...
Eu lembro o tempo antigo e dou certo cavaco:
Fazia comichões no bolso um só pataco...
Outrora o bacalhau, de lombo ou de badana,
Entrava, em nosso lar, dez vezes por semana...
E então, bem regadinho, ó divinal deleite,
Coçava o apetite aquele fino azeite...
O fiel amigo, o arroz, o próprio sabão
Trocaram Portugal por outra região...
Foi trágico ciclone, que por nós passou...
— Tudo desapareceu... Tudo o vento levou

Caluda! Por favor! Quem rosna? Quem murmura?
Em conspirata audaz, em conspirata escura?
Não tendes vós, ali, em traça sem igual,
Bairro de fino gosto, Hotel monumental?

Rendidos, hora a hora, alegres, prazenteiros,
Não tendes vós também, ali, nos cruzamentos,
Uma falange ideal de esbeltos sinaleiros,
Estátuas de cera, austeros monumentos?

Eu sei o que vós quereis, ilustres pioneiros:
Quereis água a granel, modernos saneamentos...
Os últimos, senhores, serão sempre os primeiros...
Ponde a massinha ao sol... Tereis bons orçamentos…

Se a coisa fosse a voto, eu dava opinião
De o plano se aguardar, da urbanização;
Quando ele ressurgir da triste sonolência,
E por fim acordar, sem mais impertinência,
Então ele dirá: Rever, modificar...
Mas nunca destruir... jamais escangalhar

Os ímpetos sustai, vivei também de esperança...
Sabei esperar Senhores — quem espera sempre alçança...

Tudo por Guimarães! Avante Vitorinha!
Se a vida te não corre... a culpa não é minha...
Tu és do Foot-bal expoente bem profundo...
Luta com mais genica, e marcarás ao mundo...

Falange de Minerva, a vossa lança em riste...
Que à vossa força audaz nenhum poder resiste!
Sonata infernal de trágica harmonia,
Ressoe pelos ares a fera artilharia!
Sucumba a escravidão no aço das grilhetas,
Ao ímpeto fatal das vossas maçanetas!
Da falsa ideologia a concepção bastarda
Destrua duma vez a atómica bombarda!
Que o sol, hirto de horror, da sua elipse saia...
Desabem o Everest, os Alpes e o Himalaia!
E que ante o sismo atroz, em obediência aos céus,
Recuem Maometanos, Russos e Judeus!...
5-12-48.
MENDES SIMÕES.
Laus Deo Nicholaoque

Sancto Episcopo!

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