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Milagre de S. Nicolau |
O
pregão de 1902 voltou a ser escrito por Arnaldo Pereira. Joaquim Martins de
Menezes foi o pregoeiro. O texto segue o modelo do ano anterior, repetindo o
intróito em verso: Entre as referências a acontecimentos que iam passando pelas
conversas daqueles dias, está a homenagem ao escritor Émile Zola, que falecera
no dia 29 de Setembro daquele ano.
BANDO ESCOLÁSTICO
O S. Nicolau em Guimarães
Recitado pelo
Académico Vimaranense
Joaquim Martins de
Menezes
1902
IMPROVISO
Aos Estudantes
Aí vai o nosso bando; e c se
lhe chamo — nosso
É que inda na minha Alma alguma luz me resta.
Olhando para mim, vejo que sou um moço.
E sinto-o agora mesmo, ao vir à nossa festa.
A minha Alma envolve-a a seiva das palmeiras
Ouvindo-vos falar, ouvindo-vos sonhar.
Que a flor da Mocidade é como a das roseiras:
— Quer luz para viver, e Sol para cantar.
Pedindo
para a festa o Sol que fortifique-a,
Eu levo-a dentro da Alma — uma Alma de rapaz,
Tal como um índio além, que leva uma relíquia,
Beijando dentro da Alma o que na Alma traz...
Quando no fim da vida a festa inda nos veja,
Há-de acenar de lá, num céu fremente e belo;
Como um sino a dobrar no alto duma igreja,
Como um pombal a rir no cimo dum castelo.
E então, velhinhos já, na Alma envelhecida,
Cantará de alegria a estrela aérea e calma,
Que a saudade num velho é uma segunda vida,
Como a vida num moço é uma segunda Alma...
Guimarães, 29—XI—902,
Arnaldo
Pereira
(Estudante aposentado)
Eis-nos
em plena festa!...
Cingindo
o nosso arnês
Voltamos
mais um ano — o último, talvez...
O
último... quem sabe!... A Mocidade, agora,
Envelhece
a chorar vendo nascer a Aurora,
E
expira ao pôr-do-sol, em tardes de novena...
É
tão pequena a vida... A vida é tão pequena…
Pobre
roseira em flor, nascida ao abandono,
Murcha
no mês de
Abril, julgando ser o Outono!
Mas
se não nos é dado erguer a flor que cai,
Reguê-mo-la,
sequer, chorando o que lá vai.
Vivamos
recordando o bem que se perdeu.
—
Recordar o passado é recordar o Céu!
Corramos
com a Alma a vida que nos resta,
Alegres
como alguém que vai para uma festa,
Relembrando
um sorriso, um sonho, um soluçar:
—
Quem há aí que não tenha um beijo a recordar?
Inda
há na Mocidade alguma força inteira.
Temos
ainda a capa; a capa é uma bandeira!
Ela
abre para Deus, assim como as capelas.
Desfraldada
ao luar, fará nascer estrelas,
Agitada
no azul, fará cantar roseiras.
Vamos!
para o Infinito as capas, as bandeiras!
E
elas farão voar, cantando, a Mocidade,
Morta
para o Amor, viva para a Saudade.
E
um dia, já velhinha, a capa aérea e franca
Há-de-nos
parecer tão loira, e meiga, e sã,
Que
julgaremos ver alguma pomba branca,
Voando
pela mão da Estrela-da-manhã!...
Um
bravo a Guimarães, terra de Nicolau,
Por
não usar ainda, aqui, o pão de pau!
Caulino
e serrim, soldados duma figa,
Formaram
batalhões para matar a espiga!
Correram
pelo mundo uns frémitos de medo.
Estremeceu a Europa e o mundo do mosquedo.
E
ao fim de tanta luta, ao povo só compete
Centeio
de madeira e espiga de cacete!
Só
tu, ó Guimarães, ficaste para aquém!
Guimarães!
dá cá a mão! fizeste muito bem?
Seja
embora do chic e seja da arte nova,
O
pão desse quilate é coisa que não prova.
Deixa
que o mundo grite e grite a opinião
Que
o trigo é uma balela e o milho é uma ficção,
E
que já eram cal aquelas cinco boroas
Com
que Deus sustentou as cinco mil pessoas…
Espiga
e só espiga a tua boca morde-a.
O
Porto, o da invenção, que coma essa mixórdia.
Gritemo-lo
em bom som, para que o mundo diga
Que
a espiga cá do burgo é sempre a mesma espiga
Janotinha!
Alto lá! Deixa-te de polémicas!
Tu
não tens que cheirar nas festas académicas.
É
outro o teu caminho, é outro o teu destino:
Meia
volta, volver; Inácio, toca o hino.
Ó
polícia de el-Rei! Faz cumprir as leis!
Quem
manda é Nicolau: janotas a quartéis.
Ó
amigo regedor! Tu, que segundo eu oiço,
Levaste
ano passado a Lua ao calaboiço,
Prepara
o xelindró para mais uma tareia:
Fila-me
esse cachorro e mete-o na cadeia...
Tapona
e mais tapona ao cão que a todos ladra:
Janotas
refilões, com eles para a esquadra!
Nada
de hesitações, nada de cortesia.
Refilam?
bofetão! Protestam? enxovia!
Isto
de ser clemente é coisa que não cola.
—
Levem-no ao chafariz a refrescar a bola!
E
se inda refilar, ladrando aos Estudantes,
Moca!
moca a valer! Moca nesses tratantes!
Silêncio!
Fala agora o nosso coração.
Um
hino de saudade àqueles que lá vão.
Àqueles
que lá vão por essa vida fora,
Alma
na boca, asas na Alma, olhos na Aurora,
Pisando
a estrada em flor esplêndida e funesta:
Choremos
os que já não podem vir à festa.
E
um dia, ou outro dia, ouvindo a nossa voz,
Alguém
virá também, para chorar por nós...
Também
hoje, Sampaio, eu sigo os passos teus
Adeus,
para nunca mais! Adeus! Adeus! Adeus
Andam
agora em guerra, aí, pelas esquinas,
Os
novos lampiões e as velhas lamparinas...
O
Progresso formou no globo, em batalhões,
E
arremessou a luva aos nossos lampiões!...
Mas
a eléctrica vence; aranha que não dorme,
Vai
tecendo em triunfo a sua teia enorme.
Palmas
ao vencedor! merece um parabém.
Milords! para a frente! yes!
muito bem!
Ó
lampião antigo! ó velho veterano!
Deixa
passar cantando o pensamento humano!
A
terra é um grande mar cheio de imensa calma.
São
ondas desse mar os frémitos da Alma.
Não
queiras pois agora, ó trágica carcaça,
Deter
no seu caminho a Alma que perpassa.
De
resto a tua luz já causa um certo tédio;
Hás-de
um dia cair; não tens outro remédio.
Entanto,
ó multidões, ide passando, e vede
Como
a nobre Inglaterra anda a deitar a rede...
Caixeirinho!
Ah! Ah! Ah! Então que aconteceu?
Foges
assim de nós? Que mosca te mordeu?
Reunindo
em acordo a classe que protesta,
Negas
a Nicolau dinheiro para a festa?!...
Acaba
o teu rancor; perdoa aquela troça;
Não
te zangues connosco; a culpa não foi nossa.
É
Nicolau quem manda o bando lá do Céu.
Quem manda é Nicolau! Foi ele quem
escreveu.
Por
isso dá cá a mão, abraça os Estudantes,
E
fiquemos este ano amigos... como dantes...
Tricanas
da Avenida! Amantes da Folia!
Nós
cá vamos na grande... Em pé, que já é dia!
Vinte
anos só! Floresce a Aurora que flameja!
Chegastes
finalmente... à porta da igreja...
Tricaninhas
de Deus! soltai a trança ao vento,
E
vinde assentar praça ao nosso regimento...
Este
ano ninguém passa; el-Rei assim mandou.
O
estalão é o amor. Quem é que nunca amou?
Uma
mulher que ama, ó bardos tentadores,
É
uma planta de Deus que se cobriu de flores!
Vamos!
el-Rei concede, ó pálidas maganas,
Divisas
de sargento a todas as tricanas...
Vinde
connosco, a rir, ó doces moreninhas!
— Façamos regressar ao reino as andorinhas...
Em
servir um estudante há muito mais encanto
Do
que em servir o Rei, ou mesmo o Padre Santo.
A
vida é um grande mar das mágoas mais secretas.
Aprendamos
a rir no Céu com as borboletas.
E
como um bando alegre, intemerato e nu,
Entraremos
no azul, cantando o ora pai tu...
Este
ano anda de luto a Academia. É sina!
Coimbra,
a velha Mãe, tem sangue na batina.
Boa
Mãe, velha Mãe de imaculadas tranças,
Anda
a chorar por nós, chora pelas crianças,
Mortas
a soluçar, sob o grilhão da Lei!
— Aqui de el-Rei, senhor, contra os grilhões de el-Rei!
Humanidade!
Humanidade! Humanidade!
Tiram-te
o coração, roubam-te a liberdade!
A
bandeira do Amor, que cobre a terra inteira,
Há
quem insulte, e calque, aos pés, essa bandeira!
Senhor!
Senhor! Senhor! para que serve a Alma,
Se
dorme, a pobre cega, em sossegada calma,
Sem
ver, sem ver, sem ver?!...
a consciência dorme,
E
impávida, a bramir, pela amplidão enorme,
Ergue-se
a violência intemerata, alerta,
Como
um soldado a rir n uma janela aberta.
Resta-nos
no Infinito a pálpebra divina.
Que
Deus proteja agora a capa e a batina.
Mais
um mundo poisou na pálpebra dos Céus.
Morreu
Zola, morreu o Mestre — morreu Deus!
Um
gigante que morre é um mundo que se evade.
Onde
termina o génio acaba a Humanidade.
Por
isso o homem hoje, em ânsia, em desatino,
Caminha
para Deus, mais fraco e pequenino.
Morreu
Zola; morreu, para viver mais forte.
A
vida dos heróis começa com a morte.
A
sua obra imensa, aonde o sol flameja,
Basta
abri-la no Céu para que o Céu a veja.
Enche
o mundo, enche a estrela, enche a vida, enche a História,
Como
uma bíblia aberta enche a amplidão marmórea!
E
embora isso desgoste em França a Academia,
Fará
Deus repousar lá no Infinito um dia,
Tudo
o que foi na vida o grande sobre-humano:
— A Alma, um vasto mundo, e o génio, um vasto oceano!
Saudemos
pois Zola no azul de que se junca.
O
homem fugiu de si, mas Deus não foge nunca!
Santas
de Guimarães! Noivas cheias de paz;
Mais
do que nossas noivas, quase nossas irmãs!
Toda
esta faina em que anda a Mocidade em flor,
É
por vós essa faina, ó filhas do Senhor!
Já
os nossos Avós, Santas de Guimarães,
Festejavam
cantando as mães das nossas Mães.
E
hoje as nossas irmãs, para não perder a posse,
A
herança do passado, iluminada e doce,
Vêm
à janela em flor, que o Sol aquece e doira,
Receber
com saudade a maçãzinha loira!
Nós
somos a estroinice esplêndida e sonora,
Que
faz cantar o Sol pelas campinas fora,
Que
faz rir os pardais pelos caminhos sós!
—
Mas a nossa existência é sempre para vós.
Quando
a lua entra a rir, doirando as nuvens belas,
Caçamos
rouxinóis, julgando ser estrelas.
Mas
canta em nossa Alma a vossa Alma em flor,
—
Deus anda com Noé na arca do Senhor!
Santas
de Guimarães! Entremos pela vida!
A
alma não tem sexo; é uma planta florida.
Pode
andar pelo azul em tribos ruidosas,
Mais
branca do que o luar, mais pura do que as rosas,
Assim
como os pardais, soltos pelas campinas:
—
A estrada fê-la Deus, com capas e batinas!
Entremos
pois na vida, a rir por esses montes.
Atravessando
a Aurora em bandos multicores.
Façamos
cantar as fontes!
Façamos corar
as flores!
Em
guarda, minha gente! À luta pertinaz!
Alerta
pelo ruido! Às armas, contra a paz!
Abalemos
cantando a vida dos espaços.
Cem
dias de indulgência a quem partir os braços,
Um
mês de feriado a quem estalar as peles!
São
mais cinco tostões! Aos bombos, pois! A eles!
Estrondo
em toda a linha! Aos bombos, camaradas
O
raio quando estala, estala às gargalhadas!
Que
fique o mundo surdo, e em brados apopléticos
Dai
de comer a Erdáts! Dai que fazer aos médicos
Um
hino triunfal de bombos e tambores
Rebente
à gargalhada, entre um montão de flores,
Aonde
Nicolau, no azul, um bombo empunha.
E
vamos! fogo vivo! À unha, Zé da Cunha!
Ruído
e mais ruído, assim como é da praxe!
Continência
à bandeira!
Ordinariú...
marche!
Arnaldo
Pereira.
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