![]() |
Milagre de S. Nicolau |
O terceiro bando escolástico
que nos ficou das festas conturbadas de 1870 foi escrito e recitado por A. M.
F(erreira), também conhecido pela sugestiva alcunha de Focinho de Porco. Este pregão, que se destaca por ser o mais longo
de todos os que até à data se conheciam, tendo mais de duzentos versos, é um
manifesto de rejeição da propalada morte da festa dos estudantes de Guimarães a
S. Nicolau, não se ensaiando muito a decretar a “excomunhão
maior sobre os traidores!”.
O mesmo autor, A.
M. F., escreveu e declamou, no dia seguinte, 6 de Dezembro de 1870, um outro
poema com o título “Nem mais um contrapeso, improviso alegórico”, de que ainda
falaremos.
BANDO ESCOLÁSTICO
VIMARANENSE
RECITADO NO DIA 5
DE DEZEMBRO DE 1870
por
A. M. F.
Já soaram além dos
cristalinos
As alegres canções,
festivos hinos.
Com que a nobre
classe em seu tributo,
Despindo os tristes
crepes de seu luto,
Saúda com
transporte a linda aurora,
Que vem mostrar-lhe
a virgem protectora,
Dispensa-te a final
de teus fadários!
No contínuo volver
dicionários
Já basta de crestar
louras pestanas.
Trabalho maçador!
tantas semanas.
Em fadiga aturada,
um ano inteiro.
De noite à escassa
luz dum candeeiro,
Cansado a solfejar
os substantivos?!
Justo foi, que por
fim dias festivos
Manhecessem, por
vós tão almejados.
Trabalhos compensar
tão aturados.
Ergue-te amada
prol! levanta a fronte!
Pois não vês como
fulge, no horizonte,
A estrela, que
julgáveis encoberta?!
É tempo de acordar
– Então? alerta!
Que força vos detém
nessa moleza?
Estareis por
ventura na ecerteza
Da virgem tutelar ser já finada?
Ressurjo dentre vós
mais animada:
Alento mais ganhei,
ganhei mais vida
Nas suspeitas de ser já falecida.
Derrocando o
sepulcro, triunfante,
Aquietar-vos vim,
filhos, avante!
Que esta virgem por
quem pranto correu
Está no meio de
vós, olhai, sou Eu.
Roçaram já por mim
muitos Janeiros.
Sem a lima voraz de
tais obreiros,
Deslustrar-me um só
raio desses brilhos,
Com que me
inauguraram queridos filhos
Mentora aqui de
tenras inteligências,
A muitos dei as
chaves das ciências,
Guiando-lhes a luz
dos seus talentos
À sombra destas
asas vi portentos.
Aquele vês além.
que, enverga a toga.
Aqueloutro acolá,
que as leis advoga.
E tudo que se diz,
classe distinta.
Com esses, que tu
vês de banda à cinta,
E os tais meus
senhores das lancetas
Pois indo enfim me
deve as suas tretas.
. . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . .
Passados já lá vão,
oh! tantos anos,
Que vistes, raros
filhos, sempre ufanos
Os futricas
morderem-se de inveja.
Na aldeia fiz ouvir
mais sertaneja
O estrondo festival
desta alvorada;
Contente de vos ver
entusiasmada:
Nas ruas corre a mãe da monarquia,
Ufana desta vossa
regalia.
Sim, tu,ò Guimarães, a quem a história.
Páginas consagrou
de excelsa glória
Despreza por um
pouco áureos capítulos
Esquece-te por hoje
desses títulos
Desse emblema real,
o teu pelote
E tudo mais que
enfim não cabe em mote;
Apressa-te a saudar
com voz festiva
A tua singular
prerrogativa.
Mas alguém traduziu
neste convite,
Carta ampla, de alforria sem limite?
Não se enganem,
meninos, que esta posse
Jamais em tempo
algum causará tosse,
Ao futrica. Vem cá; olha, é contigo,
Aproxima-te, escuta
que eu prossigo
Superior sempre às
ondas turiferárias
Dos heróis das
eternas luminárias
Que queriam minhas
leis venalizadas
A troco de pastéis, de arrufadas
Ergui sempre meu
colo sobranceira
Desdenhei oblações
sempre altaneira
Conservando sem
mancha o meu decoro
Mas alguém pensa
acaso, por namoro.
Que esta virgem, que os deuses aconselha,
Há-de vir afinal
baixar-lhe a orelha?
Pois não foste!...
Eu, que vi o pergaminho
Suportar muito
murro no focinho,
E depois ir de cara, como um rato,
De mergulho no
tanque como um pato?
Suspensas desde já
são garantias.
Se usurparem as
nossas regalias.
Não exista a menor
condescendência,
Para com os enjeitados da ciência.
Se cá pilhado for
algum lapuz,
Fazei-lhe das
guelas alcatruz.
Mas se algum
escapou por malha larga.
Pode vir, meu
senhor, ninguém o embarga...
Porém sempre lhe
digo, que se tenta.
Ver-se-á entre a cruz e água-benta.
Não cuidem por que
filhos me carpiram,
Que essas leis já
d’outrora se aboliram!..
Mocada furiosa nos
intrusos,
Que a nossa lei não
é de parafusos...
Tomai o
transgressor à vossa conta,
Vingai, ò filhos
meus, vingai a afronta.
Que a virgem coronal não morre ainda!
Defunta como querem
não estou linda?
Não julguem que
falece desta feita
Oh! Longe e muito
longe essa suspeita
Não pode o tempo em
mim, sou imortal,
Esqueça-se para
sempre o funeral
Com que jovens
sobrinhos dos meus manos
Quiseram festejar
meus verdes anos
Foi ilusão, meus
filhos, foi surpresa…
Surjo mais radiante
de beleza
Quanto mais me
julgáveis definhada!
Morta?! Isso é
cedo! Foi farsada!
E assentem que
mesmo, quando morta
Inda hei-de
ressurgir por outra porta….
Quando lá nos
celestes aposentos
Se fizeram escutar
esses mementos
Estava-se lá em
cima com o almoço
Ao grito aterrador
das carpideiras
Tremeram as
deidades nas cadeiras!
E Júpiter, por ser
muito nervoso,
Ouvindo o prantear
angustioso
O lugubre entoar do cantochão,
De trémulo deixou
cair da mão
A valiosa caixa de
rapé,
Ao ver-me assim
carpir à falsa-fé.
De todas – Vénus
mais descautelada
Percebendo essa
coisa bradeada,
Ouvindo aquele pio
de agoureiro
Treme e cai-lhe a
pescada do babeiro,
Mas o rico,
senhores, foi Diana!...
Que estando nesse
tempo da semana
Fazendo nesse dia
de servente
De assustada caiu
com um acidente
Ao tempo que, de
pé, escava um alho,
Ficando
interrompido o seu trabalho
Juro a mais
infeliz, oh! coitadinha
Por um triz não
morria com uma espinha!
E Neptuno, que ao
pé esfregava um olho,
Pulando de terror entorna o molho.
Vulcano também foi
surpreendido,
Distante olhava as
horas distraído
No seu preciosícimo relógio,
Ouvindo recitar o
necrológio.
Saltaram-lhe dos
olhos as lunetas;
E as deusas, enfim,
todas patetas,
Perderam na fugida
seus toucados
Os deuses de tropé
atrapalhados,
Sabendo a triste nova de surpresa,
Quebraram as correias dos sapatos.
Alguns houve, que
enfim, mais timoratos
Ficaram com fanicos no caminho.
A final vi-me só
com meu padrinho.
Mas Júpiter por ser
que mais penetra.
Do triste canto expõe a triste letra,
E vendo já que a
face me desbota
Por terra logo cai,
e dá-lhe a gota!...
Decidida afinal
mais animosa,
Ouvindo a juventude
estudiosa,
Em prantos
debulhada de saudade,
A estorcer-se nos
braços da orfandade,
Generosa a chorar mentida morte,
Ergui-me furiosa e
com voz forte.
No mor auge
exclamei de meus furores:
Excomunhão maior sobre os traidores!
E mais veloz ainda
que um foguete
Corri acolchetando
o meu colete,
Duma vez convencer
almas pequenas,
Que não morro inda
assim, desmaio apenas.
Ergue-te, nobre
classe, mais altiva.
Que a virgem coronal é ainda viva!
E com a nobre
altivez do entusiasmo,
Assassina os
traidores com o sarcasmo.
Não lembrem nunca
mais mentidos prantos,
Com que vi
sepultados meus encantos.
Inda não morro
assim, caros amantes!...
Hão-de ser então
frontes alvejantes,
Quem vir há-de enfim cerrar meus olhos*
Não são as tenras
mãos desses pimpolhos
Quem há-de vir
roçar meu casto rosto.
Se encurtado for o
meu sol-posto,
E murcharem para
vós as esperanças,
Acaso julgareis, loiras crianças…
Que expirando no
leito do desleixo,
Haveis de vir por
fim atar-me o queixo?
Arreda! meus
ratões, tirai os cotos...
De tal vos livro
eu, grandes marotos.
. . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
A vós lindas
flores, uma pergunta:
Julgáveis-me talvez
também defunta?
Ainda não.
Felizmente a virgem bela
Apenas desmaiou, por bagatela.
Por hoje que esse
pranto fique enxuto!
Eis-me aqui! foi
mentira! cesse o luto!
Sim; tu, gota de
mel, do céu caída.
Para adoçar os
agrores desta vida
Recebei dessa mágoa
por cautério
Esse pomo
envolvente dum mistério.
Ao colher das
cestinhas para o regaço
Rubicundas maçãs
com trémulo braço,
Raiava em vossas
faces um sorriso
Que me fez
relembrar do paraíso!...
Traduzi nesses
frutos nacarados
Protestos mil de amor simbolizados.
Mas alto!... Quando
falo tudo pasma?!
Talvez que eu seja tida por fantasma!...
Pois se alguém
desconfia que morri,
Venha cá com
franqueza toque aqui.
A. M. F.
[*As palavras que vão a negro são conjecturas. O único exemplar deste pregão que conhecemos, pertencente
à Biblioteca da Sociedade Martins Sarmento, está algo danificado, impedindo a
leitura em algumas partes. Na sua transcrição foi necessário algum “restauro”,
que consistiu em preencher as lacunas com propostas de leitura que nos
pareceram plausíveis. As palavras a negro nos versos assinalados dão resultado desse restauro, para
a qual contribuiu, com o seu saber nicolino e a inspiração que se lhe conhece, o
meu amigo Miguel Bastos.]
PS: O texto foi corrigido a partir de uma cópia manuscrita existente na Sociedade Martins Sarmento, que permitiu uma leitura sem conjecturas.
0 Comentários