O Domingo Gordo em finais do séc. XIX, segundo Alfredo Guimarães


Hoje, as nossas tradições de Domingo Gordo quase que se resumem à presença farta de carne de porco à mesa, à hora de almoço. Em alguns lugares de Guimarães, havia (porventura ainda haverá) o costume de entronizar o Pai das Orelheiras como rei do Carnaval, cujo "enterro" aconteceria na noite de terça-feira. Em finais do século XIX o  domingo que antecedia o Carnaval era dia de folia, como o descreve Alfredo Guimarães, num texto publicou no jornal republicano Alvorada, na sua edição de 5 de Fevereiro de 1914, que aqui se reproduz.

Os caretas

E então aos domingos, na cidade, parecia que a meia tigela do desfrute era varrida a um vento para as esquinas, aglomerada à espera de ver as primeiras caretas que passassem.

Nessas tardes insípidas do carnaval, cinzentas e friorentas como num anúncio à cinza de quaresma que aí vinha, só as janelas das casas em que moravam as raparigas se não fechavam. Um sino triste tocava, para S. Domingos, ao exercício de quarenta horas. Beatas pesadas, com vidrilhos e rendas pretas nas redondas capas burguesas, mandavam os máscaras ao inferno com os seus duros olhos insexuais. Padres jesuítas, de guarda-chuva de doze varas e uns butes grossos de bezerro pintado, embuçavam-se do vento, pelas orelhas. E as janelas permaneciam cerradas, longa e timidamente cerradas, com receio das balas de pós de goma que por vezes surgiam dum ou outro lado, imprevistamente.

Mas no largo mor da cidade esperavam às esquinas, como dizia, magotes parvos de janotas da meia tigela, para desfrutar as caretas.

O céu era de cinza, por aquele tempo áspero de Fevereiro. Ainda então, nas velhas salas pesadas, se acendiam os braseiros. E cá fora, a esse ar livre cheio de asperezas, passavam a instantes os máscaras: uma frangalhada torpe, sem espírito e sem novidade, que eram lavradeirinhas minhotas, cambadas das botas, com uma careta de cartão rosado e o cestinho de verga com três laranjas; desordeiros de guarda-pó, o pau de freixo lançado à ombreira, ameaçando destruir céu e terra quando o bivaque das laranjas e dos bugalhos cerrada e bestialmente rompia das esquina; uma ou outra dama de ademanes relíssimos, apanhando com ênfase a trapalhada das saias; o homem da coroça, de guarda-sol azul com varas de baleia e uns tamancos monstruosos cascalhando na calcetaria; um tipo de deputado, de sobrecasaca e botas-de-elástico, defendendo dos perigos da bugalhada a cartola de gato pingado, um funil; todos eles de careta, com nojentíssimas caretas de pasta, de bigode em vírgula, os beiços cor de tijolo e umas bochechas de petiz extraordinariamente enfoladas.

Depois, à tarde - ou, antes, ao fim da tarde - saía o bando dos sapateiros, que davam então cartas na chalaça, na terra, à mistura com certa dose de obscenidade parece que agradável à burguesia boçal.

Dentro dum carro de mão, revestido de heras e puxado por quanto garotos a cidade contava, desenrolava-se o cortejo, precedido de alguns bombos herculeamente batidos, em geral por indivíduos envoltos em peles de atanado ou sola. Então abriam-se todas as vidraças e janelas. Já o combate dos jogadores de poses havia terminado e as casas, nas frontarias, apareciam mosqueadas de cal, alagadas d e papelada rota de cartuchos. De dentro do carro, em seguida surgia um bode qualquer, que falava e gesticulava, mas que, pelo ruído dos garotos, a custo se fazia ouvir. Senhoras decentes reclinavam-se das janelas e o homem continuava gritando, enterrado nas verduras do carro:

                               Nós vimos na função
                               Isto é tudo uma reinação
                               daqui até S. Sebastião
                               Quem gostar da gargalhada
                               meta-se co'a sapateirada
                               porque os ricos, se têm tudo,
                               de alegres não têm nada.

Dito o bando, o cavalheiro mergulhava de novo nas ervas, talvez com certo apetite. Às oito da noite ainda o bando corria a cidade à luz de archotes. A essa altura regressavam a casa, com os missais vermelhos engatilhados a par das contas, nos dedos, as beatas duras das quarenta horas. E já também os tigeleiros das esquinas, depois de haverem gasto o resto da tarde num exercício de fogo, para as janelas, corriam aos aposentos caseiros, a lavarem a cabeça com claras de ovo, ansiosos de correrem aos rebuçados do salsifré carnavalesco do teatro da terra.
Era assim um domingo gordo, há vinte anos.
Alfredo Guimarães.
Alvorada, Guimarães, 5 de Fevereiro de 1914


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