A maldição de Pedro Oliva. Relevo polícromo proveniente do antigo altar de Nossa Senhora da Vitória, do Padrão da praça da Oliveira, actualmente no museu de Alberto Sampaio. |
O
Padre Torcato Peixoto de Azevedo, no capítulo 75.º das suas Memórias Ressuscitadas da
Antiga Guimarães, descreve
o monumento que diz ser “conhecido
com o nome de Padrão
de Nossa Senhora da Vitória,
embora
já existisse quando o oratório
foi
erecto”. Segundo o Padre Torcato, o padrão foi feito “em tempo de
el-rei D. Afonso 4.º”, sendo composto por uma estrutura “em abóbada
de pedra, com quatro arcos fundados em quatro pedestais”, que
abrigava “um crucifixo de pedra dourado e pintado, e lavrado com
excelentes molduras”. No arco do Padrão voltado para a porta da igreja estava
“um altar de Nossa Senhora com o título da Vitória, pela que deu
a el-rei D. João o 1.º, em Aljubarrota”. Aos pés desse altar
estava “esculpida em baixo relevo a efígie do licenciado Pedro de
Oliva, o qual, sendo advogado, pretendeu destruir os privilégios do
cabido e caseiros de Nossa Senhora”, sobre
quem recaiu “a ira de Deus”, uma história exemplar que vale a
pena ler.
Do
padrão que a igreja Colegiada tem defronte da porta principal.
Tem
esta Colegiada, defronte da porta da igreja, um Padrão, e há, entre
ele e a porta, dezassete passos, em
que está um pátio de passeio ladrilhado, com assentos encostados à
torre dos sinos e parede da igreja, onde todas as manhãs concorre
muita gente. Foi feito este Padrão em tempo de el-rei D. Afonso 4.°,
em abóbada de pedra, com quatro arcos fundados em quatro pedestais,
e um dos arcos corresponde à porta da igreja, e neste está um altar
de Nossa Senhora com o título da Vitória, pela que deu a el-rei D.
João o 1.º, em Aljubarrota. Tem
o altar seu fundamento sobre os pedestais, de sorte que por baixo
dele se pode
andar livremente; nos panos das paredes dos ditos arcos estão as
armas de el-rei D. Afonso e no alto da abóbada
faz um bico de diamante.
Aos
pés do altar de Nossa Senhora da Vitória está esculpida em baixo
relevo a efígie do licenciado Pedro de Oliva, o qual, sendo
advogado, pretendeu destruir os privilégios do cabido e caseiros de
Nossa Senhora, o que fazia com grande instância. E, estando uma
manhã conversando junto deste padrão com o abade de Freitas e Luís
Gonçalves, cónegos da Colegiada, sendo por eles repreendido diante
de outras pessoas da perseguição que fazia, e que se guardasse da
ira de Deus, respondeu que não era o diabo tão feio como o pintavam
e que, enquanto vivesse, não havia abrir mão do que começara.
Ainda o não tinha
acabado de pronunciar quando caiu mortal, com a língua fora da boca,
a fala perdida e o rosto disforme, e, sendo levado para sua casa,
tanto que a ela chegou deu o final arranco da vida.
Foi
o cadáver levado à sepultura que tinha em S. Francisco, onde houve
outro sucesso não menos maravilhoso que, morrendo sua mulher depois
dele trinta e três anos, se mandou enterrar no mesmo jazigo, o qual,
sendo aberto, se achou o corpo do marido todo inteiro, sem que a
terra quisesse dele mais nada do que consumir-lhe o gorgomilo e as
mortalhas. Foi
tirado da cova e posto à vista do povo encostado à parede, enquanto
chegava o corpo da mulher, e depois se lançaram ambos juntos na
sepultura: pelo que se mandou retratar o dito perseguidor dos
privilegiados da Senhora e o caso se escreveu em pergaminho.
Dentro
do padrão está um crucifixo de pedra dourado e pintado, e lavrado
com excelentes molduras, com a imagem de Nosso Senhor Jesus Cristo
crucificado, a de Nossa Senhora e S. João ao pé da cruz. E, junto à
de Nossa Senhora, está a do bem-aventurado S. Dâmaso, e, junto à
do Evangelista, S. Torcato bispo, e, da outra parte da cruz virada
para o altar da Senhora da Vitória, está Nossa Senhora do Rosário
encostada no alto da cruz, e, ao pé dela à mão esquerda da
Senhora, S. Filipe Apóstolo, e, da direita, S. Gualter. Na haste da
cruz por baixo da imagem de Jesus Cristo, da parte do Poente, está
uma lâmina de bronze e nela esculpidas umas letras, na maneira
seguinte:
Neste
lugar do Padrão tem feito Deus muitos milagres por intercessão de
sua Mãe Santíssima, muitos estão em pergaminho, que se guardam no
arquivo da Colegiada, escritos por um tabelião chamado Afonso Peres,
dos quais direi este, dos mais farei especial capítulo. — “Senhor.
Afonso Peres, tabelião na vossa vila de Guimarães, faz saber a
vossa mercê, que na era de 1380 anos, 8 dias do mês de Setembro,
foi posta a cruz na Alvacaria de Guimarães, e aduziu
aí Pedro Esteves nosso
natural, filho que foi de Estêvão Garcia, mercador em Guimarães, e
a qual cruz, Gonçalo Esteves irmão do dito Pedro Esteves diz, que
fora vontade de Deus dar-lhe a entender que fosse a Normandia a
Anaflor, e que a comprasse, e a aduzisse
a este lugar de Guimarães, onde está assentada, a par da Oliveira,
e quando estava junto dela assentaram que estava seca, e daquele dia
a três dias começou a reverdecer, e deitar ramos, e eu Afonso Peres
tabelião isto
escrevi, o qual milagre trasladei somente do livro, aonde estão
muitos escritos,
que se guarda no arquivo daquela igreja, para dizer que do dia dele
se deu a esta igreja o título da Senhora da Oliveira. que hoje se
observa: porém o mais certo é tomá-lo do lugar onde esteve
enterrada, pois nele deixou o seu.”
Por
esta certidão se mostra que, quando ali se colocou a cruz, já havia
a Oliveira, da qual é tradição que viera de junto do mosteiro de
S. Torcato e, como neste lugar não haja outra, se tem por certo que
esta é a mesma do milagre. No tempo das últimas guerras com Castela
se verificou isto melhor, porque os soldados que para elas iam a
desnudaram de seus ramos, tendo por fé que seriam as armas mais
defensivas para a guarda de suas vidas, e ainda hoje os que se
embarcam, para fazerem suas viagens sem perigo, os levam em sua
companhia, para que, como pombas da arca de Noé, ponham os pés na
terra firme, e, como têm
sido muitos os milagres, é grande a devoção.
Padre
Torcato Peixoto de Azevedo, Memórias Ressuscitadas da Antiga
Guimarães, [manuscrito de 1695], Tipografia da Revista, Porto, 1845, cap. 75.º, pp. 261-264.
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