Carta do Diabo, a vós senhoras gentis...


Em Agosto de 1898, começou a publicar-se em Guimarães uma gazeta de periodicidade irregular, imaginada e, quase toda ela, escrita, por dois jovens vimaranenses, João de Meira, que somava 17 anos, e António Garcia de Sousa Ventura, que ainda não passava dos 15 anos e que, um dia, muito mais tarde, chegaria a Chefe do Estado-Maior da Armada. Chamava-se A Parvónia e tinha pendor satírico (propunha-se  "metralhar a Parvónia a cascas de pepino"...). No seu quarto número, datado de 5 de Janeiro de 1899, inseriu uma carta às damas de Guimarães, saída da pena de um dos seus colaboradores mais regulares, O Diabo, pseudónimo de João de Meira, que goza com as inflamações poéticas que afectavam alguns bardos da terra por altura das festas a S. Nicolau. Os versos que cita são retirados dos pregões dos anos de 1896 a 1898, todos de Bráulio Caldas, e de um soneto que era “uma explosão” de génio ou de asneira, de autor desconhecido.
Aqui fica, para que se não esqueça. 
~*~

Carta a

vós senhoras gentis de pura e fina raça

(acerca das festas a S. Nicolau)

Venho conversar um pouco convosco.
Damas de Guimarães, mimosas flores-de-lis,
falar-vos de um assunto mais velho do que o pecado, porque antes que Eva pecasse de parceria com Adão, já a maçã pendia da árvore fatal. E é justamente, acerca da maçã, o fruto que a vossa boca rosada aromatiza e morde, que necessito de vos dizer estas coisas de nenhum modo banais.
Eleitas do Senhor...damas de Guimarães,
a aceitação de ofertas implica gratidão aos oferentes.
Aceitando as maçãs contraís uma obrigação, ficais em dívida para com os académicos que vo-las ofereceram.
Como pagais essa dívida? Como vos desembaraçais dessa obrigação? Que lhes ofereceis em troca? O vosso amor?
Tendes acaso amor suficiente para todos os que passarem cavalgando sob vossas janelas e voltados na sela vos oferecerem maçãs?
Eu não duvido, não, que o vosso amor,
Donzelas, ó rivais da Aurora a despontar,
chegue para todos os garbosos académicos que metamorfoseados em pajens, em tunos, em paxás e outras figuras carnavalescas, vos brindam com o fruto em questão, mas peço licença para vos recordar que esse amor, essa ternura infinda não deve ser distribuída em rações como o pão dos pobres de Santo António.
Convindo, porém, em que de um só aceiteis com uns restos de atavismo, com uma predisposição que remonta a Eva, a maçã oferecida, quero ainda prevenir-vos de que muitos desses académicos vestem sotaina negra, cor dos corvos e da alma de muitos deles e decerto a nenhuma de V. Exas. convém a posição de Hermengarda de Euricos tão prosaicos e tão saturados de latim.
*
Vós que tendes um altar no peito dos rapazes
recebestes um soneto das mãos de um académico, mas ignorais que o prazer de ver a poesia em letra redonda e de vo-la ofertar, custou ao vate ao amolgamento diário das costelas de há tempos a esta parte.
Vós que tendes mães que vos adoram, vós que sois todas bondade, ignorais o que seja um parente tirano incapaz de compreender os altos destinos reservados ao poeta que vai rabiscando sonetos nas páginas brancas de um compêndio.
Frustrado intento o de querer vedar com tareia as torrentes de poesia que lhe irrompem do cérebro anormal.
Quando um homem sente em si o fermento de três Petrarcas num arcaboiço de Camões, é impossível abalar-lhe com palmatoadas os gritos de Génio, porque o Génio, minhas senhoras, assim como a Asneira, rebenta quando é comprimido. Aquele soneto era uma explosão. De Génio? De Asneira? Permiti-me que não entre em averiguações de tal ordem.
Intitulava-se — AVÓS... Desconfio que o título acoberte uma insinuação malévola; tomo que chamando-vos “avós”, queira chamar-vos velhas.
.............. Damas, rolas gemedoras
Que voais ao nosso lado sedutoras
guardai o soneto, bem estimado, na caixinha de cartonagem onde conservais os sabonetes e os lenços bordados, guardai-o que ele representa muito lágrima, muita tareia e pedi a Um chamado Deus que se compadeça de uns de cérebro anómalo como o poeta.
*
Recebestes também
Epopeias do Azul com versos do luar,
de um outro académico três quadras que rematam:
Quero dar-te a minha vida
E por ti quero morrer
Não sei se V. Exas. estão dispostas a deixá-lo imolar-separa remir os pequeninos pecados que por acaso tenham. Mas se tal vão fazer, eu lhes rogo, suspendam o sacrifício inútil. Suspendam visto o poeta-académico não ser cordeirinho puro que se possa imolar a Jehovah, ou bode expiatório sobre o qual possam V. Exas. descarregar suas culpas.
*
Houve ainda um terceiro poeta que não contente com sua invejável posição de mamífero placentário da ordem dos primatas, vos disse minhas senhoras, pretender ser transformado em flor, à semelhança de Jacinto. Foi um modo encoberto de pedir que o tragam ao peito; há nos versos uma saudade dos tempos em que o vale tinha ama.
*
Digam-me V. Exas. que eu quis fazer paradoxo, e digam-me eles, os académicos, que também eu, um dia, afivelei a máscara de veludo negro e de chapéu de dois bicos, sapato de fivela, em traje de tuno compostelano, fiz aquilo que hoje, se não acho ridículo, ao menos me parece, velho e sem significação; digam-me isto que eu responderei apenas:
— É verdade, e não fiz uma asneira, uma criancice.
Todos esses maviosismos que pedi emprestado à lira de Bráulio Caldas tiveram por fim adoçar as rudezas do meu carácter de Diabo e pôr nesta carta umas tonalidades melífluas muito convenientes a quem, como eu, vem conversar com senhoras.
O Diabo [João de Meira]
A Parvónia, Guimarães, 5 de Janeiro de 1899

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